domingo, 20 de dezembro de 2009

Genoma e impacto do ambiente abrem novos rumos para teoria da evolução


Publicação de 'A Origem das Espécies' completa 150 anos

 


Foto: RIA Novosti/AFP

Talvez a mudança mais conceitual proposta pelas novas pesquisas seja sobre o papel do ambiente no processo evolutivo. Em vez de atuar como mero filtro sobre as características, como proposto por Charles Darwin, o ambiente teria o poder de causá-las (Foto: RIA Novosti/AFP)


Neste novembro as comemorações do bicentenário de nascimento de Charles Darwin (1809-1882) atingem seu ponto máximo. Foi neste mês, há 150 anos, que ocorreu a publicação da primeira edição de "A Origem das Espécies", o livro que inscreveu o naturalista no hall dos grandes gênios da ciência.

Embora ninguém questione a grandiosidade do feito intelectual de Darwin – afinal, conceitos como adaptação, evolução e seleção são alguns dos fundamentos da biologia moderna –, são cada vez mais expressivas as vozes que defendem que "A Origem..." não é a última palavra na tentativa de explicar os mecanismos pelos quais a vida se reinventa e se diversifica. Observações feitas em novas áreas de investigação, como a genômica e a epigenética, não encontram paralelo no pensamento de Darwin. E há quem proponha que talvez seja necessária uma nova revolução conceitual na biologia.

  • Aspas Antes da genômica, havia poucas formas de pesquisar a evolução experimentalmente. Ficava-se restrito ao estudo de fósseis, a experimentos de reprodução dirigida e a pouca coisa mais"
Na verdade, o que se ensina hoje sobre evolução já é uma versão expandida e melhorada do pensamento do naturalista inglês. Darwin não conhecia, por exemplo, o trabalho do monge austríaco Gregor Mendel (1822-1884), apesar de eles terem sido contemporâneos.

Foi somente no início do século 20 que biólogos do Ocidente tiveram contato com os estudos de Mendel sobre hereditariedade, o que levou ao conceito de gene e ao surgimento da genética. A fusão das ideias propostas pelos dois pensadores começou a ser elaborada na década de 1930 e recebeu o nome de Síntese Evolutiva ou neodarwinista. Em suas elaborações, os biólogos neodarwinistas reservaram para o gene um lugar central.

Mutações na sua estrutura levariam ao aparecimento da grande diversidade de características dos seres vivos, sobre as quais atua a seleção natural. A maior ou menor vantagem adaptativa conferida ao organismo por uma mutação resultaria na variação da frequência da mutação em uma população. Traços como o comportamento social e cooperativo em insetos, animais e até em humanos seriam apenas esforços dos organismos para assegurar a transmissão de suas fitinhas de DNA, mantendo elevadas as frequências daqueles genes.

Essa visão, que muitos taxaram de “genecêntrica”, foi radicalizada pelo inglês Richard Dawkins, que afirmou nos anos 1970 que a preservação das sequências de bases nitrogenadas “é a razão última de nossa existência”, e que todos os organismos são só grandes “máquinas de sobrevivência” do próprio material genético.

Papel dos genes
Provêm justamente do estudo dos genes – mais especialmente da genômica, a disciplina que estuda os mecanismos do genoma (o conjunto de genes) – as novidades que estão pondo em xeque algumas das ideias mais tradicionais sobre evolução. “Antes da genômica, havia poucas formas de pesquisar a evolução experimentalmente”, lembra Ney Lemke, professor do Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu e pesquisador na área de redes biológicas. “Ficava-se restrito ao estudo de fósseis, a experimentos de reprodução dirigida e a pouca coisa mais.”

Hoje há várias formas de observar em tempo real o processo de variação e seleção que leva ao surgimento de novas variedades de organismos, como exemplifica o pesquisador. “Alguns experimentos cultivam colônias de bactérias tipo Escherichia coli [comumente encontrada no intestino humano] em laboratório por décadas, monitorando o aparecimento das mutações no genoma e as consequências que elas acarretam para as sucessivas gerações. Isso permite acompanhar a evolução passo a passo e testar modelos para refutá-los ou confirmá-los. A pesquisa sobre evolução passa de um debate qualitativo e abstrato para o âmbito da avaliação quantitativa.”

A pesquisa genômica abriu os olhos dos pesquisadores para uma série de fenômenos de cuja existência nem Darwin nem seus seguidores suspeitavam. São mecanismos como a transmissão horizontal de genes (THG), que consiste na troca de sequências de bases e de pedaços inteiros de genoma entre seres tão diferentes como vírus, bactérias, plantas e animais, incluindo o homem. Ou a metilação de DNA, que permite que indivíduos portadores das mesmas características genéticas apresentem aspectos bem diferentes.

Alguns geneticistas estão repensando até a própria definição de gene
Também surpreendem as grandes diferenças de arranjos na estrutura do genoma que podem ser observadas em espécies que, evolutivamente falando, são muito próximas. E, como se não bastasse todo esse movimento, alguns geneticistas estão repensando até a própria definição de gene.

Quando o Projeto Genoma Humano foi iniciado, em 1990, acreditava-se que ele traria a chave para a compreensão do Homo sapiens. “Na época havia a crença de que a maior parte dos genes se destinava a codificar proteínas. Por isso, uma vez descoberto esse código, esperava-se que seria possível prever o desenvolvimento do indivíduo”, explica Gustavo Maia Souza, professor-colaborador da Unesp de Rio Claro.

Ao longo dos anos 1990 foram anunciadas descobertas de genes supostamente responsáveis por originar as mais diversas características, do alcoolismo à homossexualidade. O projeto chegou ao fim em 2003, e até 2008 resultados mais acurados continuavam sendo divulgados.

Mas, ao longo desses anos, uma reviravolta aconteceu. Em vez dos cerca de 100 mil genes estimados, os biólogos encontraram menos de 30 mil. Descobriu-se que mais da metade não codificava nenhuma proteína, sendo por isso batizada de “DNA lixo”. E mesmo a parte “funcional” do genoma se comportava de modo estranho, com alguns genes se mostrando capazes de codificar mais de uma proteína.

Hoje sabemos que até a posição do gene pode influenciar sua capacidade de dar origem a uma proteína. E que o tal do DNA lixo tem o poder de regular os mecanismos de síntese proteica, estabelecendo os momentos e circunstâncias em que ela vai ocorrer.

“Hoje os geneticistas falam na ação combinada de dezenas ou centenas de genes que interagem simultaneamente para afetar a expressão de uma única característica”, escreve a bióloga israelense Eva Jablonka em seu livro "Evolution in four Dimensions". “Ficou para trás a época em que o genoma era visto como uma biblioteca de genes individuais – unidades autônomas que produzem sempre o mesmo efeito. E se o genoma é um sistema organizado, em vez de apenas uma coleção de genes, então o processo que gera variação pode ser uma propriedade do próprio sistema, que é regulada e modulada pelo genoma e pela célula”, diz ela.

Árvore redesenhada
Tais descobertas estão sendo lentamente assimiladas ao repertório de noções sobre evolução. Uma das primeiras formulações esboçadas é uma crítica à chamada “árvore da vida” – o clássico gráfico que o inglês esboçou para explicar seu pensamento. Acontece que a colocação das espécies distintas em “galhos” divergentes sugere uma transmissão de genes apenas da espécie ancestral para a sucessora, pressupondo um isolamento entre os organismos que não é compatível com o que sabemos agora a respeito da troca horizontal de genes.

  • Aspas A imagem da árvore ficou comprometida. Mais adequado é imaginar uma figura onde os vários galhos estejam ligados uns aos outros"
“Com certeza, no primeiro bilhão de anos após o surgimento da vida, a transferência horizontal de genes era algo muito frequente entre os seres vivos”, explica Aldo Mellender, geneticista e professor de História das Ideias sobre Evolução Biológica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “E mesmo hoje continua havendo grande troca de material por essa via”, diz. “Fenômenos como o aumento de resistência entre bactérias do tipo E. coli se devem à capacidade que elas têm de trocar genes entre si”, complementa Lemke.

“A transmissão horizontal de genes implica que certas características de um organismo são oriundas de outras espécies que vivam no mesmo ambiente. A ideia da árvore da vida não se sustenta”, diz. Mellender concorda: “A imagem da árvore [original] ficou comprometida. Mais adequado é imaginar uma figura onde os vários galhos estejam ligados uns aos outros.”

Outro conceito visado é o de que as transformações nos organismos são gradativas. Em sete oportunidades, Darwin escreveu que "natura non facit saltum" (a natureza não dá saltos). Os seres vivos passariam por pequenas mudanças. Se elas conferissem alguma vantagem adaptativa, seriam acumuladas ao longo do tempo, e o processo eventualmente levaria ao surgimento de novas espécies.

Essa perspectiva foi questionada ainda no século 19 por ninguém menos do que T. H. Huxley, na época o mais destacado defensor das ideias de Darwin. Mas no século 20 o gradualismo foi abraçado pela síntese neodarwinista.



reprodução/Reprodução

Apesar de proporem algumas mudanças aos preceitos de Darwin e seus seguidores, as críticas não dão suporte aos adversários do evolucionismo, como os adeptos do criacionismo. Pelo contrário, elas reforçam as previsões da seleção natural (Foto: Collection Roger-Viollet/France Presse)


Somente nos anos 1970 o paleontólogo americano Stephen J. Gould (1941-2002) chamaria a atenção para o fato de que há poucos fósseis que retratam a transição entre espécies. Ele procurou formular uma nova teoria, denominada Equilíbrio Pontuado, que sugere que o surgimento de novas espécies ocorre de forma mais rápida. Hoje o argumento fóssil de Gould é complementado pelas evidências genômicas.

A transmissão horizontal faz com que alguns seres vivos subitamente incorporem ao seu genoma genes inteiros de uma espécie diferente. “Também são comuns episódios onde se vê toda a reorganização da estrutura de DNA de um organismo”, diz Lemke. “A evolução embaralha o genoma, reorganiza, faz rearranjos complexos que podem ser comparados a saltos. É um processo muito maior do que só o acúmulo de pequenas mutações”, complementa.

Mellender afirma que mesmo a síntese neodarwinista já falava na possibilidade de eventos rápidos de especiação. E a genômica só tem reforçado a possibilidade. “Um exemplo que vemos de salto é o fenômeno da poliploidia entre os vegetais”, explica. Ele cita o trigo. Os ancestrais da planta tinham 14 cromossomos. Nas gerações seguintes, por problemas de divisão celular e hibridizações, acabaram surgindo indivíduos com 42 cromossomos, configurando uma espécie nova.

Talvez a mudança conceitual mais significativa esteja no papel desempenhado pelo ambiente no processo de evolução. Para Darwin, as condições ambientais atuariam como uma peneira sobre os seres vivos em perpétua transformação, favorecendo algumas características surgidas e descartando outras. Mas os estudos em epigenética têm mostrado que, além de selecionar modificações em organismos, os fatores ambientais têm o poder de causá-las.

Um dos primeiros defensores desta ideia foi o biólogo inglês Conrad Waddington (1905-1975), que cunhou o termo epigenética. Em série de experimentos feitos nos anos 1940, ele expôs larvas de moscas drosófilas a elevadas temperaturas. Como resultado do choque térmico, 40% das moscas, ao se tornarem adultas, demonstravam uma diferença na aparência: não apresentavam mais o característico desenho de veias nas asas. Waddington então fazia com que as moscas com a modificação cruzassem entre si, e submetia a prole ao mesmo tratamento de exposição ao calor. A seguir, repetia o processo de selecionar os espécimes sem sinais de veias e de fazê-los cruzar entre si.

O resultado é que, em cada etapa, crescia o número de indivíduos que, embora possuíssem a configuração genética para tal, não exibiam veias. Em menos de 20 gerações, eles chegaram a constituir 90% da população. Mais impressionante foi constatar que, a partir da 14ª geração, algumas moscas começaram a apresentar a modificação sem nem passarem pela exposição ao calor. Apenas pelo cruzamento, o biólogo obteve uma população com quase 100% dos indivíduos sem marcas nas asas. Em outras palavras, um traço adquirido havia sido assimilado e incorporado pelo mecanismo de hereditariedade, sem que houvesse mutações nos genes. Há ocorrências disso inclusive em humanos.

“Reabilitação” de Lamarck
Essas descobertas de certo modo reabilitam ideias do francês Jean Baptiste de Lamarck (1744-1829), que afirmava que características adquiridas por indivíduos em suas interações com o ambiente podiam ser transmitidas à prole. Ele propunha, por exemplo, que girafas têm pescoço comprido porque seus pais tiveram de se esticar para alcançar alimento nas árvores. Quando Darwin propôs que o ambiente era apenas uma instância de seleção de variações, Lamarck foi posto de escanteio.

  • Aspas Até recentemente a afirmação de que variações adquiridas poderiam ser herdáveis constituía uma heresia grave que não deveria ter lugar na teoria evolutiva"
O pensamento neodarwinista estabeleceu uma profunda separação entre os processos internos que geram o organismo e o mundo exterior. Reunir esses dois elementos é o desafio para os teóricos da evolução do século 21, que poderiam, num gesto surpreendente, adaptar algumas das ideias lamarckistas para a era genômica. “É possível que existam mecanismos lamarckistas que permitam a herança de mudanças genômicas induzidas por fatores ambientais. Mas até recentemente a afirmação de que variações adquiridas poderiam ser herdáveis constituía uma heresia grave que não deveria ter lugar na teoria evolutiva”, escreve Eva Jablonka.

“Para o neodarwinismo, o organismo era um sistema fechado. Tudo o que acontecia nele era decorrência de um código informacional, o genoma”, diz Gustavo Maia Souza. “A epigenética abre o sistema, pois reconhece que os seres vivos, mesmo possuindo uma base genética, dependem também do contexto ambiental. O contexto onde aquele genoma está vai refletir em leituras distintas daquela informação.”

  • Aspas Talvez por fruto da herança de Darwin, tenhamos dado ênfase demais a uma visão do ambiente agindo apenas como um filtro. Não está sendo fácil aceitar que ele possa ter um papel muito mais importante do que se pensava anteriormente"
Souza acredita que as novas descobertas irão fazer crescer na biologia os estudos de sistemas complexos, justamente o tema da disciplina que ele ministra em Rio Claro. “Os estudos em epigenética chegam a ser revolucionários”, avalia Mellender. “Estão trazendo uma evidência tão forte que é difícil negar. Talvez por fruto da herança de Darwin, tenhamos dado ênfase demais a uma visão do ambiente agindo apenas como um filtro. Não está sendo fácil aceitar que ele possa ter um papel muito mais importante do que se pensava anteriormente.”

Para Souza, a mudança que se avizinha deverá ser ainda maior. “O pensamento clássico via os genomas como sistemas fechados, é determinista e reducionista: tal gene gera tal proteína”, diz. “A epigenética mostra que os sistemas biológicos, mesmo tendo uma base genética, são dependentes do contexto ambiental.” Com base nisso, ele defende a adoção de uma descrição dos organismos na qual eles sejam vistos como sistemas auto-organizados, de modo que a variabilidade de características dos seres vivos não se deveria à aleatoriedade, mas a propriedades físico-químicas intrínsecas dos organismos.

Ponto contra o criacionismo
É importante ressaltar que tais propostas de revisão crítica das ideias de Darwin em nada beneficiam adversários do pensamento evolucionista como os adeptos do criacionismo ou do Design Inteligente. Muito pelo contrário. Mellender explica que um dos argumentos do DI é que fenômenos como o movimento dos flagelos em micro-organismos se baseiam em interações moleculares tão complexas que não poderiam ter se formado gradualmente. Já teriam surgido “prontos”. Dá-se a este argumento o nome de complexidade irredutível.

  • Aspas Essa nova variante da gripe suína, por exemplo, surgiu da recombinação de três espécies anteriores de vírus, através de um mecanismo que décadas atrás a gente nem sequer suspeitava que existisse"
Mas pesquisadores da genômica já conseguiram formar redes de interação metabólicas altamente complexas, envolvendo mais de 20 mil proteínas. E elas foram formadas por pequenos acréscimos e perdas, exatamente da maneira prevista pelo princípio da seleção natural.

Lemke diz que mesmo a nossa visão sobre o funcionamento dos flagelos mudou. “A genômica mostra de forma bastante clara que esse processo ocorreu ao longo de muito tempo. Temos inclusive uma ideia dos passos evolutivos. No caso da E. coli, por exemplo, podemos mostrar que as proteínas que compõem o flagelo ocorrem em outras espécies de bactérias, em muitos casos com funções levemente diferentes”, explica. “A ideia de complexidade irredutível não encontra comprovação empírica”, diz Mellender.

Há quem sustente, porém, que nenhuma grande revisão da síntese neodarwinista seja necessária, pelo menos por enquanto. É o que pensa Guaracy Rocha, coordenador do curso de Ciências Biológicas da Unesp em Botucatu, que há 20 anos ministra a disciplina de evolução. “A essência do pensamento darwinista consiste em afirmar que os organismos se modificam, que essas modificações acontecem por um processo de seleção que atua entre as diversas variantes e que essas variações não ocorrem com fins específicos. Nada disso é contestado pelas descobertas feitas na genômica e na epigenética”, diz.




Quanto à árvore da vida, Rocha concorda que a imagem não mais representa o conhecimento que temos hoje, embora ressalte que ela traduzia, e bem, o que se sabia na época em que foi proposta. Ele acredita que a principal contribuição trazida pelas pesquisas efetuadas nos últimos anos é a possibilidade de compreender melhor os mecanismos que levam à formação de novas espécies entre as várias formas de seres vivos – um problema, aliás, que Darwin não chegou a solucionar, apesar do título de seu livro.

“Estamos vendo que o processo de surgimento de espécies novas entre os vegetais é totalmente diferente do que se pode observar em bactérias ou em vírus. Essa nova variante da gripe suína, por exemplo, surgiu da recombinação de três espécies anteriores de vírus, através de um mecanismo que décadas atrás a gente nem sequer suspeitava que existisse.”

Ele afirma que Darwin tinha mais interesse por Lamarck do que se pensa hoje em dia, mas contesta a visão de que a epigenética possa levar a uma retomada das ideias do francês. “Já se sabia antes que a expressão do genoma resulta da interação entre este e o ambiente. Mas as mutações nos genes, que podem ou não ser inibidas por fatores ambientais, não surgiram especificamente para atender a nenhuma função. Elas foram produzidas e descartadas pela ação da seleção. E isso não é lamarckismo, é darwinismo”, diz.

Para os defensores de uma revisão da teoria, o problema é que ainda há lacunas a serem preenchidas, como afirma Souza: “Darwin demonstrou de uma forma muito bonita que existe um processo evolutivo. A questão é se ele é geral. As evidências da paleontologia demonstram isso. Agora como isso acontece é que é complicado. A seleção natural é um mecanismo forte, mas não de criação de espécies”.

Diante dessa diversidade de visões, é de se esperar, pelos próximos anos, discussões vigorosas entre as várias correntes, que talvez venham a culminar em uma teoria da evolução 2.0. Mas, independentemente de qual venha a se mostrar predominante daqui a 20 ou 30 anos, tanto umas quanto outras, na verdade, são expressões do profundo valor científico da obra de Darwin.

Copyright: Unesp Ciência

terça-feira, 19 de maio de 2009

Parceiro de Charles Darwin

Pesquisador alemão Fritz Müller, naturalizado brasileiro, em longa correspondência com Darwin, forneceu evidências empíricas da consistência da seleção natural

Neste ano em que se comemoram o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e os 150 anos do livro A origem das espécies, poucos sabem como idéias inovadoras e transformadoras do pensamento humano nessa área chegaram ao Brasil. Na realidade, elas foram introduzidas por um pesquisador alemão, naturalizado brasileiro, conhecido por Fritz Müller, personagem excêntrico e progressista que viveu boa parte de sua vida em Santa Catarina, entre Blumenau e Nossa Senhora do Desterro, antigo nome de Florianópolis. Müller deixou uma obra naturalística enorme, que contribuiu para fundamentar e enriquecer a teoria da evolução das espécies por seleção natural de Darwin e projetou o Brasil no cenário da culta ciência européia. Infelizmente, o legado de Müller é pouco conhecido entre nós, mesmo entre a comunidade de biólogos e professores que não divulgam sua obra.
Johann Friedrich Theodor Müller, seu nome completo, nasceu na Alemanha, numa pequena aldeia (Windischholzhausen) da Turíngia, próximo à cidade de Erfurt. Filho mais velho de um pastor evangélico, desde cedo revelou seu interesse pela Natureza, influenciado por Hermann Blumenau, amigo de seu avô, e de quem receberia profunda influência.

Atraído pelas ciências naturais e matemática Müller ingressou na Universidade de Berlim, onde, em 1844, obteve o grau de doutor em filosofia (história natural) aos 22 anos, defendendo uma tese sobre as sanguessugas da região de Berlim. Nessa ocasião já pensava em imigrar, empolgado pelas aventuras e descrições do Brasil feitas por Hermann Blumenau – fundador da cidade que leva seu nome, em Santa Catarina. Em 1845 torna-se professor ginasial em Erfut, mas devido a suas crenças liberais e temperamento rebelde abandona o posto. No mesmo ano, decide cursar medicina na Universidade de Greifswald (1845-1848) como meio de facilitar sua migração.


Mudança para o Brasil
Em 1852, aos 30 anos, Müller emigra com sua família (esposa e filha de nove meses) e um irmão da Alemanha para a recém-fundada Colônia de Blumenau, onde vive por 45 anos, até sua morte em 1897. Nos quatro primeiros anos em que viveu na mata virgem de Blumenau ajudou a construir a colônia, trabalhando na enxada e no machado como simples colono, apesar de sua privilegiada formação acadêmica. Durante esse período pesquisou fauna e flora, relacionou-se com os índios xoklengs e excepcionalmente atuou como médico, pois sua vocação era de naturalista. Sentia-se muito feliz com sua nova opção de vida no que chamava de sua segunda pátria, e nunca mais retornou à Alemanha.

Em 1855 Müller instalou-se com a família na casa em estilo enxaimel que construiu com suas próprias mãos e que hoje abriga o museu de ecologia que leva seu nome.

Fritz Müller estudou e descreveu vários grupos zoológicos, principalmente invertebrados marinhos. Tinha um talento incomum para o desenho e suas descrições eram sempre permeadas de ilustrações de incrível detalhamento. Em Desterro estabelece correspondência com várias eminências científicas da época, destacando-se sua extensa e contínua correspondência com Charles Darwin que se estende por 17 anos, até a morte do naturalista inglês em 1882. Foi em Desterro que F. Müller atingiu reconhecimento na comunidade científica internacional sendo conhecido por Fritz Müller – Desterro, codinome proposto por Ernst Haeckel (pai do termo Ecologia), para distingui-lo de outros notáveis homônimos alemães.

Em 1861, Fritz Müller recebeu um exemplar do livro A origem das espécies de Charles Darwin. Ao ler a obra sente-se identificado com as idéias de Darwin. Por ser ateu convicto, sua mente não apresentava nenhuma restrição ou resistência às concepções de Darwin, recebendo-as com natural abertura e aceitação. Inicialmente, pensa em publicar algumas observações gerais em favor da teoria, mas, em seguida, considerou que a melhor prova seria testá-la no campo, com observações experimentais com seres vivos, em vez de restringir-se a discussões teóricas.

Para testar a teoria darwiniana Müller escolheu os crustáceos, por ser um grupo muito diversificado e abundante no litoral de Santa Catarina e também por sua taxonomia já ser bem estabelecida na época. F. Müller postulou que se a teoria de Darwin estivesse correta seria possível demonstrar que os diversos táxons (grupos) de crustáceos teriam se separado uns dos outros, a partir de um ancestral comum, e foram adquirindo características novas em fases sucessivas de seu desenvolvimento (ontogênese), que seriam fixadas e/ou eliminadas pela seleção natural.

Suporte Observacional
Em seu estudo pioneiro com crustáceos Müller realizou uma série de observações que culminaram com o descobrimento de muitos fatos novos, principalmente no que se refere ao seu desenvolvimento. O fruto desse longo e minucioso estudo resultou num livro de excepcional riqueza de observações originais Für Darwin (Pró-Darwin). O livro foi publicado em Leipzig, Alemanha, em 1864 (por W. Engelmann) e ajudou a propagar e defender a teoria darwiniana, que tinha suscitado forte reação contrária naquele país. A tradução de Für Darwin para o português foi feita em 1907-08 na revista Kosmos do Rio de Janeiro (versão incompleta) e mais recentemente (1990) uma versão completa foi empreendida por Hitoshi Nomura (Fundação Catarinense de Cultura e Departamento Nacional da Produção Mineral, edição esgotada).

Esse denso e original ensaio inclui um número extraordinário de observações sobre crustáceos, abrangendo as diferentes adaptações das espécies de ambiente marinho que migraram para água doce e ambiente terrestre, a assimetria bilateral dos membros, o dimorfismo sexual, o polimorfismo intra-específico e a morfologia e desenvolvimento das diferentes formas larvais. Tudo com ilustrações à mão livre.

Ao longo de 12 capítulos, o livro trouxe subsídios preciosos e decisivos a favor da teoria darwiniana. Como conclusão às suas observações Müller escreve: “Durante o período crucial da dúvida, que não foi curto, quando o fiel da balança oscilava diante de mim em perfeita incerteza entre os prós e os contras [à teoria darwiniana], e quando todo e qualquer fato que levasse a uma pronta decisão teria sido bem-vindo, nunca tive o menor problema com qualquer contradição surgida entre as conseqüências trazidas para a classe dos crustáceos pela teoria de Darwin. Pois nunca as encontrei, nem na época, nem depois. Aquelas que havia encontrado dissiparam-se após uma consideração mais profunda, ou converteram-se em sustentáculos da doutrina darwinista”.

Cabe ressaltar que o uso de caracteres adquiridos compartilhados (conhecidos hoje por sinapomorfias) para mostrar relações filogenéticas (evolutivas) entre espécies vivas de crustáceos foi uma grande inovação introduzida por Müller. Os diagramas de ramos que ele utilizou, hoje conhecidos como cladogramas por agruparem os organismos e seus ancestrais comuns em clados, e tão utilizados em árvores filogenéticas, já haviam sido propostos por Müller um século antes da teoria cladística, proposta por Willi Hennig. Nelson Papavero relata que Müller foi, certamente, o primeiro a criar uma filogenia séria, com base em observações concretas e exaustivas de material vivo, diferentemente de Darwin, e depois, Haeckel, que propuseram árvores filogenéticas teóricas.

Müller desenvolve ainda em Für Darwin, a recapitulação ontogenética da filogenia, que foi fortemente corroborada e divulgada por Haeckel. Na época de Müller, já se sabia que as fases larvais e juvenis dos crustáceos abrangem uma grande variedade de formas. Os crustáceos mais basais nas filogenias, como cracas, copépodes e ostracodes emergem do ovo sob forma de náuplio, a forma larval mais simples. Os caranguejos marinhos e camarões de água doce nascem no estágio de zoea, formas larvais que já apresentam inúmeros apêndices. Já os lagostins de água doce e alguns caranguejos terrícolas (crustáceos superiores) suprimem as fases larvais e a metamorfose e emergem do ovo já sob forma juvenil, pequenos adultos em miniatura.

Pioneirismo Plagiado
No litoral de Santa Catarina, Fritz Müller descobriu um camarão marinho do gênero Penaeus que nasce, curiosamente, sob forma de náuplio, antes de passar pelo estágio de zoea. Face a essa observação Müller sugeriu, de acordo com a teoria darwiniana, que os caranguejos marinhos e os camarões que emergem sob forma de zoea, deveriam passar pelo estágio mais simples de náuplio durante seu desenvolvimento embrionário, o que de fato se confi rmou. Hoje, pode-se dizer que os crustáceos derivados, que saíram do ambiente marinho para áreas continentais, “embrionizaram” as formas larvais mais simples de seus ancestrais, carregando a história de seus antepassados na sua fase embrionária (recapitulação ontogenética da filogenia).

Segundo David West, a Lei da biogenética, de autoria de Haeckel em 1866, que defende que a ontogenia (desenvolvimento individual, de embrião a adulto) recapitula a fi logenia (trajetória evolutiva de um grupo), foi na realidade proposta originalmente por F. Müller e “copiada” por Haeckel, que só reconheceu sua dívida para com Müller em 1872.

Darwin teve acesso ao livro de Fritz Müller em 1865 e percebeu imediatamente o inestimável suporte que a obra representava às suas idéias. Nesse mesmo ano, Darwin escreve a F. Müller ... “O senhor fez um admirável serviço pela causa em que ambos acreditamos. Muitos de seus argumentos me parecem excelentes, e muitos de seus fatos, maravilhosos.... vejo a publicação de seu ensaio como uma das maiores honras que jamais me foram conferidas”... O próprio Darwin providenciou a tradução do livro de Müller para o inglês numa edição publicada em 1869, sob o título de Facts and arguments for Darwin. Inicia-se então uma intensa correspondência entre os dois que dura até a morte de Darwin. Mas eles nunca se conheceram pessoalmente.

Darwin referia-se ao amigo Fritz Müller como “príncipe dos observadores” e o considerava como um mestre, apesar de 13 anos mais jovem. Darwin recorreu a Müller inúmeras vezes para elucidar pontos importantes e controvertidos de sua teoria. E Müller supriu Darwin de incontáveis evidências nas áreas da zoologia e botânica que fundamentaram e enriqueceram sua teoria. Fritz Müller é citado 16 vezes nas edições posteriores de A origem das espécies de Darwin. Em carta ao amigo, Darwin escreve: “Só Deus sabe se viverei o suficiente para aproveitar a metade dos importantes fatos que me tens comunicado... Não acredito que haja alguém no mundo que admire seu zelo na ciência e seu grande poder de observação mais que eu” (carta de 23/02/1881).

A correspondência entre Fritz Müller e Darwin foi publicada em português por um dos autores (Cezar Zillig) sob o título de Dear Mr. Darwin, em 1997, por ocasião do centenário da morte de Fritz Müller.

Durante toda sua vida Müller dedicou-se entusiasticamente à sustentação da teoria de Darwin, através de inúmeras observações minuciosas, muitas delas encomendadas pelo próprio Darwin. Em seu obituário publicado na revista Nature (1897), questiona-se se algum outro naturalista, além do próprio Darwin, deu ao mundo uma massa tão ampla e original de observações na qual a seleção natural fosse tão consistentemente fundamentada.

Desconhecido no Brasil
Dentre as inúmeras contribuições de Müller destaca-se ainda o reconhecido fenômeno do mimetismo mülleriano, citado em todos os livros de biologia evolutiva. Quantos biólogos brasileiros sabem que esse fenômeno foi proposto pelo Fritz Müller de Blumenau/ Desterro? O mimetismo batesiano, que propõe que borboletas monarcas palatáveis assumem padrões de desenhos e cores de asas muito similares às borboletas não-palatáveis, como forma de proteção contra predadores, parece ser mais bem conhecido. Fritz Müller ficou intrigado em descobrir porque várias borboletas não-palatáveis, em Santa Catarina, apresentavam também padrões de desenhos e cores de asas muito semelhantes entre si.

Que vantagem esse mimetismo poderia trazer, já que todas as borboletas eram não-palatáveis e, portanto, não apreciadas por predadores? Müller demonstrou que existe uma vantagem real e incontestável nesse tipo de mimetismo que é inversamente proporcional ao quadrado do número de seus indivíduos. Isso significa que a espécie mais rara teria um ganho maior e, portanto, estaria sob seleção natural mais forte.

Apesar de seu possível desconforto e da necessidade de sobreviver numa região tão inóspita, Müller deixou um enorme legado florístico e faunístico, especialmente da região sul do Brasil, contribuindo para o conhecimento da sistemática, morfologia e fisiologia dos seres vivos. Identificou e descreveu, pela primeira vez um número enorme de espécies de invertebrados marinhos, de água doce e terrestres, além de plantas da região subtropical, sempre enriquecendo suas descrições com ilustrações de incrível detalhamento. Entre o legado faunístico destacam-se crustáceos, abelhas brasileiras (principalmente as sem ferrão), insetos tricópteros, mosquitos, cupins, formigas, borboletas e hemicordados, entre outros. Em seu legado florístico dedicou-se em especial às orquídeas e bromélias (estudando ainda as interações inseto-planta), plantas trepadeiras com seus ramos modificados em gavinhas, movimentos de plantas e folhas, entre outros.

CONCEITOS-CHAVE ■ Fritz Müller, naturalista alemão que em 1852, aos 30 anos, emigrou para o Brasil, foi o único colaborador de Charles Darwin aqui.

■ Ao longo de anos de correspondência, Müller, que nunca teve um encontro pessoal com Darwin, forneceu evidências empíricas, resultado de suas observações sobre a consistência da evolução.

■ Para testar a teoria darwiniana Müller escolheu os crustáceos, por ser um grupo muito diversificado e abundante no litoral de Santa Catarina onde vivia e também por sua taxonomia já ser bem estabelecida na época.

■ Desse longo e minucioso estudo resultou o livro Für Darwin (Pró-Darwin). Publicado em Leipzig, Alemanha, em 1864, o qual ajudou a propagar e defender a teoria darwinista que havia provocado forte reação contrária naquele país.

■ Criador do mimetismo mülleriano, Fritz Müller é pouco conhecido no Brasil, mesmo entre biólogos.
– Os editores


PARA CONHECER MAIS M. W . Castro, 1992. O sábio e a floresta. Ed. Rocco, Rio de Janeiro.

F. Müller, 1869. Facts and arguments for Darwin. John Murray, Londres.

N. Papavero, 2003. Fritz Müller e a Comprovação da Teoria de Darwin em A recepção do darwinismo no Brasil. H. M.B. Domingues; M. Romero Sá; Glick T. Ed. Fiocruz, Rio de Janeiro.

E. Roquette-Pinto; P. Sawaya; Nascimento, G.K P. Friesen; Zillig, C. 2000. Fritz Müller: reflexões biográficas.

P. Sawaya, 1966. Homenagem a Fritz Müller. Ciênc. Cult. Vol. 18.

D. A. West, 2003. Fritz Müller: A naturalist in Brazil. Ed. Pocahontas Press, Virginia.

C. Zillig, 1997. Dear Mr. Darwin: a intimidade da correspondência entre Fritz Müller e Charles Darwin. Ed. AS Gráfica e Editora.

domingo, 17 de maio de 2009

O outro Darwin

Livro aponta compaixão abolicionista como fonte da teoria da evolução por seleção natural
MARCELO LEITE

Os 200 anos de nascimento de Charles Darwin forneceram ocasião para um frenesi editorial. Celebrou-se a efeméride sobre o único grande pensador do século 19 a atravessar o 20 incólume, ou bem adaptado, com dezenas de livros. Darwin foi exumado, de novo, para demonstrar o excelente estado de conservação do mito do cientista guiado apenas pelas luzes da razão e dos fatos.Eis o homem cujo pensamento pôs a religião de joelhos. Aquele que expulsou os vendilhões de valores do templo do conhecimento objetivo. O profeta barbudo da teoria que tudo explicou e tudo explicará, muito além de Marx e Freud.Felizmente há historiadores na praça, como Adrian Desmond e James Moore. Autora de uma já celebrada biografia de Darwin ("A Vida de um Naturalista Atormentado", 1994), a dupla produziu aquele que poderá permanecer como o livro mais importante da safra de 2009, "A Causa Secreta de Darwin". Uma tijolada de 485 páginas na vitrina de cientificismo em que se converteu boa parte da divulgação científica.Leitura obrigatória, em especial para brasileiros. Desmond e Moore (D&M) põem no meio do salão vitoriano o preto que muitos nacionais ainda relutam em admitir no sofá da casa grande. A obra fundamenta a tese de que a senzala brasileira, afinal, pode ter sido tão importante para a teoria da evolução quanto as ilhas Galápagos. Na origem de tudo, a escravidão.Os primeiros capítulos de D&M trazem uma detalhada reconstituição da militância abolicionista das famílias Darwin e Wedgwood, nas quais Charles cresceu e se casou (com a prima-irmã Emma). O tio Josiah Wedgwood, responsável por convencer Robert Darwin a permitir o embarque do filho no navio Beagle, candidatou-se ao Parlamento só para defender a causa.Da fábrica de porcelanas Wedgwood saíra, já em 1787, por obra do avô de Darwin, um medalhão cuja venda angariava fundos para a abolição do tráfico de escravos. Trazia a inscrição "Não sou eu um homem e um irmão?" sobre a figura de um negro de joelhos, com as mãos acorrentadas. É a ilustração ideal do fulcro da tese de D&M: todo o pensamento de Darwin gira em torno da unidade da espécie humana, irmanada por um ancestral comum.Esta convicção moral, para os autores, foi a matriz de "A Origem das Espécies". Dela brotou a ideia de diversificação a partir do tronco único da Árvore da Vida. Era também a questão que galvanizava o debate entre abolicionistas, defensores da espécie humana única, e escravistas, adeptos da noção de espécies separadas.Esse debate foi travado nas trincheiras da ciência. Uma lista impressionante de nomes nele se engajou. Darwin não raro estava no centro da controvérsia, conspirando ou altercando com boa parte deles: Charles Lyell, Alfred R. Wallace, Louis Agassiz, Thomas Huxley, Ernst Haeckel, Arthur de Gobineau, e por aí vai.D&M compõem um panorama fascinante da cultura do século 19 anglo-saxão no momento em que se produzia o cisma entre antropologia física e cultural. Darwin participou com vigor, movido por uma indignação trazida do berço, mas reforçada com a experiência direta da crueldade da escravidão no Brasil. Na velhice, ainda se lembrava com desgosto dos gritos de um negro seviciado em Pernambuco e da separação de pais e filhos para a venda no mercado do Rio de Janeiro.ValoresA tese central do livro já seria suficiente para adicionar um grão de sal ao credo ainda tão em voga de que não há lugar para valores na ciência natural. Calhou de Darwin estar certo, mas não por ter se orientado exclusivamente pela bússola das evidências naturais. Pintá-lo como o campeão da razão objetiva em combate contra a superstição religiosa resulta numa falsificação grosseira. O materialismo naturalista era seu método, não sua crença.D&M vão além. Darwin seria movido não só por uma convicção abstrata, mas também por um sentimento mais visceral: compaixão. Esta subtese, pouco desenvolvida no livro, sugere que Darwin, mais até do que animalizar o homem, estendeu as raízes do humano em direção aos animais.De um lado, Darwin buscou nas emoções baixas dos primatas, e mais atrás, as origens das elevadas faculdades humanas. De outro, explicou a existência de raças na espécie humana -talvez a sua maior dificuldade- como produto de instintos inferiores, pelo mecanismo da seleção sexual. Nada de essencial nos separaria das bestas."Dois assuntos que comoviam meu pai talvez mais profundamente do que quaisquer outros eram a crueldade com animais e a escravidão -sua ojeriza por ambos era intensa, e sua indignação era avassaladora em caso de qualquer leviandade ou falta de sentimento nessas matérias", testemunhou o filho William em 1883, como destacam D&M no capítulo final de "A Causa Secreta".O biocientista pós-moderno, avesso a todo "sentimentalismo" e interferência de valores "ideológicos" na pesquisa, terá alguma dificuldade de reconciliar esse outro Darwin com seu mais celebrado herói.

LIVRO - "Darwin's Sacred Cause. How a Hatred of Slavery Shaped Darwin's Views on Human Evolution" ("A Causa Secreta de Darwin. Como o Ódio à Escravidão Conformou a Visão de Darwin sobre a Evolução Humana") Adrian Desmond e James Moore. Houghton, Mifflin Harcourt, 485 págs., US$ 30,00.

sábado, 21 de março de 2009

A Darwin que é de Darwin

Charles Darwin é um de paradoxo moderno. Não sob a ótica da ciência, área em que o seu trabalho é plenamente aceito e celebrado como ponto de partida para um se grau de conhecimento sem precedentes sobre os seres vivos. "Sem a teoria da evolução a moderna biologia, incluindo a medicina e a biotecnologia simplesmente não faria sentido. O enigma reside na relutância quase um de mal-estar que suas idéias causam entre um vasto contingente de pessoas, algumas delas fervorosamente religio sas, outras nem tanto. Veja o que ocor re nos Estados Unidos. O país dispõe das melhores universidades do mundo, detém metade dos cientistas premia dos com Nobel e registra mais pa tentes do que todos os seus concorren tes diretos somados. Ainda assim só um em cada dois americanos acredita que o homem possa ser produto de mi lhões de anos de evolução. O outro considera razoável que nós, e todas as coisas que nos cercam, estejamos aqui por dádiva da criação divina. Mesmo na Inglaterra, país natal de Darwin, o fato de ele ser festejado como herói nacional não impede que um em cada quatro ingleses duvide de suas idéias ou as veja como pura enganação. Na semana em que se comemora o bicen tenário de nascimento de Darwin e, por coincidência, no ano do sesqui centenário da publicação de seu livro mais célebre, A Origem das Espécies, como explicar a persistente má vonta de' para com suas teorias em países campeões na produção científica?

Para investigar a razão pela qual as ideias de Darwin ainda são vistas co mo perigosas, é preciso recuar no pas­sado. Quando o naturalista inglês pela primeira vez propôs suas reses sobre a evolução pela seleção natural, a maio ria dos cientistas acreditava que a Ter ra não tivesse mais de 6.000 anos de existência, que as maravilhas da natu reza fossem uma manifestação da sa­bedoria divina. A hipótese mais aceita sobre os fósseis de dinossauros era que se tratava de cria turas que perderam o embarque na Arca de Noé e foram extintas pelo dilúvio bíblico. A publicação de A Origem das Espécies teve o efeito de um tsunami na Inglaterra vitoriana. Os biólo gos se viram desmentidos em sua cer­teza de que as espécies são imutáveis. A Igreja ficou perplexa por alguém desafiar o dogma segundo o qual Deus criou o homem à sua semelhança e os ani mais da forma como os conhecemos. A so ciedade se chocou com a tese de que o homem não é um ser especial na natureza e ainda por cima, tem parentesco com os macacos. Havia na quele momento, com preensível contestação científica às novas idéias. Darwin havia reunido uma quantidade impressionante de provas empíricas - mas ainda restavam mui tas questões sem resposta.

O primeiro exemplar a sair da" gráfica foi enviado a sir lobo Herscbel, um dos mais famosos cientistas ingleses vivos em 1859. Darwin tinha tanta ad­miração por ele que o citou no primeiro parágrafo de A Ori gem das Espécies. Herscbel não gostou do que leu.. Ele não podia acreditar sem provas científicas tangíveis, que as es pécies podiam surgir de varia ções ao acaso. Pressionado, Dar win disse que, se alguém lhe apontasse um único ser vivo que não tivesse um ascendente, sua teoria poderia ser jogada no lixo. O que se encontrou em profusão foram evidências da correção do pensamento de Darwin em seus pontos essenciais. Hoje, para entender a história da evolução. sua narrtiva e mecanismo, os modernos darwinistas não precisam conjemrar sobre o funcionamento da hereditariedade. Eles simplesmente consultam as estruturas genéticas. As evidências que susten tam o darwinismo são agora de grande magnitude - mas, estranhameme, a ansiedade permanece.

Outros pilares da ciência moderna, o como a teoria da relatividade, de Albert Einstein não suscitam tanta desconfiança e hostilidade. Raros são aqueles que se sentem incomodados diante a impossibilidade de viajar mais rápido que a luz ou saem à rua em protesto contra a afirmação de que a gravidade deforma o espaço-tempo. Evidentemente, o núcleo incandescente da irritação causada por Darwin tem conotação religiosa. A descoberta dos mecanismos da evolução enfraqueceu o único bom argumento disponível pa ra a existência de Deus. Se Ele não é responsável por todas essas maravilhas da natureza, sua presença só poderia ser realmente sentida na fé de cada in divíduo. Mas isso não explica tudo. Em 1920, ao escrever sobre o impacto da divulgação das ideias darwinistas, Sigmund Freud deu seu palpite: "Ao longo do tempo, a humanidade teve de suportar dois grandes golpes em sua auto estima. O primeiro foi constatar e que a Terra não é o centro do universo. e o segundo ocorreu quando a biologia desmentiu a natureza especial do homem e o relegou à posição de mero descendente do mundo animal. Pelo ( raciocínio do pai da psicanálise a rejeição à teoria da evolução seria uma forma de compensar o "rebaixamento" da espécie humana contido nas ideias de Copémico e Darwin).

O biólogo americano Stephen Jays Gould, um dos grandes teóricos do evolucionismo no século xx, morreu em 2002, dizia que as teorias de Darwin são tão mal compreendidas não porque sejam complexas, mas porque muita gente evita compreendê-las. Concordar com Darwin significa aceitar que a existência de todos os seres vivos é regida pelo acaso e que não há nenhum propósito elevado no caminho as do homem na Terra. Disse a VEJA o biólogo americano David Sloan WIlayson, da Universidade Binghamton: "As grandes ideias e teorias são aceitas ou rejeitadas popularmente por suas conseqüências, não pelo seu va lor intrínseco. Infelizmente, a evolu ção é percebida por muitos como uma arma projetada para destruir a religião, a moral e o potencial dos seres huma nos". Uma pesquisa publicada pela revista New Scienst sobre a aceitação do darwinismo ao redor do mundo mostra que os mais ardentes defenso res da evolução estão na Islândia, Di­namarca e Suécia. De modo geral. a crença na evolução"' é inversamente proporcional à crença em Deus. Mas a pesquisa encontrou outra configuração interessanre: os habitantes dos países ricos acreditam menos em Deus que aqueles que vivem em países inseguros. Isso pode significar que a crença em Deus e a rejeição do evolucionismo são mais intensas nas sociedades a sujeitas às pressões darwinistas. como c escreveu a revista Economist.

A teoria da evolução causa mal-estar em muita gente - mas só algumas confissões evangélicas conveneram o darwinismo em um inimigo a ser combatido a todo custo. Como essas reJi- t gires são poderosas nos Estados Unidos. é lá que se trava o mais renbido COID- ( bate dessa guerra santa. Ciência e reli- I gião já andaram de mãos dadas pela t maior parte da história da bumanidade (veja reportagem na pág. 88). Mas es se nó se desatou há dois séculos e Dar win Joi um dos responsáveis por esse . divórcio amigável. com nítidas vanta gens para ambos os lados.

Desde o ano passado, o bordão en ITe os criaciooistas americanos é "li berdade acadêmica". A ideia que ten tam passar é que o darwinismo é ape nas uma teoria. não um fato, e ainda por cima está cbeio de lacunas e é ca reme de provas conclusivas. Sendo assim. não há por que Darwin mere cer maior destaque que o criacionis mo. O argumemo é de evidente má-fé. Em seu significado comum. teoria é sinônimo de hipótese, de acbismo. A teoria da evolução de Darwin usa o termo em sua conotação cienúfica. Nesse caso. a teoria é uma síntese de um vasto campo de conhecimentos formado por hipóteses que foram tes tadas e comprovadas por leis e fatos cienúficos. Ou seja. uma linha de ra ciocínio confirmada por evidências e experimentos. Por isso. quando é en sinado numa aula de religião. o Gêne sis está em local apropriado. Coloca do em qualquer outro contexto. sóserve para confundir os esmdantes so bre a natureza da ciência.

A ciência não tem respostas para todas as perguntas. Não sabe. por exemplo, o que existia antes do Big Bang. que deu origem ao universo há 13,7 bilbões de anos. Nosso conheci memo só começa três minutos depois do evento. quando as leis da física passaram a existir. Os cien tistas também não são capa zes de recriar a vida a partir de uma poça de água e al guns elementos químicos o que se acredita ter aconte.o~ cido 4,5- bilhões de anos"" atrás. A mão de Deus teria contribuído para que esses eventos primordiais tenham ocorrido? Não cabe à ciência responder enquanto não houver pro vas científicas do que aconteceu. O fato é que a luta dos criacionistas con tra Darwin nada tem de científica. Em sua profissão de fé, eles têm o pleno direito de acreditar que Deus criou o mundo e tudo o que existe nele. Coisa bem diferente é querer impingir essa maneira de enxergar a natureza às crianças em idade escolar, renegando fatos comprovados pela ciência. Essa atitude nega às crianças os fundamen tos da razão, substituindo-os pelo pensamento sobrenatural.

Manda o bom senso que não se misturem ciência é religião. A primeira perscruta os mistérios do mundo físi­co; a segunda, os do mundo espirimal. Elas não necessanwente se elimi nam. Há cientistas eminentes que creem em Deus e não veem nisso ne nhuma contradição com o darwinismo. O mais conhecido deles é o biólogo americano Francis Collins, um dos responsáveis pelo mapeamen to do DNA..humano, Diz ele: "Usar as ferramentas da ciên cia para discutir religião é uma atitude imprópria e equivocada. A Bíblia não é um livro científico. Não deve ser levado ao pé da letra". A Igreja Católica aceitou há bastante tempo que sua atri­buição é cuidar da alma de seu I bilhão de fiéis e que o Mundo físico é mais bem ex plicado pela ciência. O Vati­cano até organizará em março o simpósio "Evolução bioló gica: fatos e teorias – Uma avaliação crítica 150 anos depois de A Origem das Espécies".

Em A Origem das Espécies, num raciocínio que cabe em poucas linhas mas expressa ideias de alcance gigan tesco, Darwin produziu uma revolução que alteraria para sempre os ru mos da ciência. Ele mostrou que todas as espécies descendem de um ances­tral comnrn. uma forma de vida sim ples e prilnitiva. Darwin demonstrou também que, pelo processo que bati zou de seleção naturaI. as espécies evoluem ao longo das eras, sofrendo mutações aleatórias que são transmi tidas a seus descendentes. Essas mu­tações podem determinar a permanên cia da espécie na Terra ou sua extin ção - dependendo da capacidade de adaptação ao ambiente. Uma década depois da publicação de seu livro se minal, o impacto das ideias de Darwin se multiplicaria por mil com o lança mento de A Descendência do Homem. obra em que mostra que o ser humano e os macacos divergiram de um mes mo ancestral, há 4 milhões de anos.

O embate entre evolucionistas e criacionistas teria causado um des gosto profundo a Darwin. que era religioso e chegou a se preparar pa ra ser pastor da Igreja Anglicana. Esse plano foi interrompido pela fantástica aventura que prorago nizou entre 1831 e 1836, em viagem a bordo do Beagle, um pequeno navio de exploração científica, numa das passagens mais conhecidas da história da ciência. Aos 22 anos, Darwin embarcou no Beacle para servir de acompanhante ao capitão do barco, o aristocratainglês Robert Titzroy. Durante a viagem, que se estendeu por quatro continentes, Darwin deu vazão à curiosidade sobre o mundo natural que o acompanhava desde a infância. Até a volta à Inglaterra, havia recolhido 1526 espéices de frascos com alcool e 3907 esp´´ecimes preervados. Darwin escreveu um diário de 770 páginas, no qual relata suas experiências nos lugares por onde passou. No brasil, visitou o Rio de Janeiro e a Bahia, extasiando-se com a biodiversidade da mata Atlancica - mas ficou horrorizado com a maneira como os escravos eram tratados.

Durante a viagem. Darwin fez as principais observações que o levariam a formular a teoria da evolução pela seleção natural. Grande parte delas te ve como cenário as llbas Galápagos, no Oceano Pacífico. Lá, reparou que muitas das espécies eram semelbantes às que existiam no conlinente, mas apresenravam pequenas diferenças de uma ilha para OUIra.. Chamaram sua atenção. principalmente. os rentiJhões. pássaros cujo bico apresentava um formato em cada ilha. de acordo com o tipo de alimentação disponível. A única explicação para isso seria qu'e as primeiras espécies de animais che garam às ilhas vindas do conlinente. Depois. desenvolveram características diferentes.. de acordo com as condi ções do ambiente de cada ilha. Era a prova da evolução. Mais recentemen te. ao eswdarem os mesmos tentiJhões das llbas Galápagos. grupos de biólo­gos observaram a evolução ocorrer em tempo real. Os pássaros evoluíam de um ano para outro. de acordo com as mudanças nas condições climáticas da ilha. Darwin. que definiu a evolu ção como um processo invariavelmen te longo. através das eras. ficaria es­pantado com as novas descobertas em seu parque de diversões cienúfico.

Ao retomar à Inglaterra. após a viagem do Beagle. Darwin foi amadu recendo a teoria da evolução e come­çou a escrever A Origem das Espécies dois anos depois, em 1838. Só publi cou o volume. no entanto, após 21 anos. Ele sabia do potencial t}xplosivo de suas ideias na ultraconservadora Inglaterra do século XIX - da qual, ele próprio, era um legítimo represen tante. Elaborar uma teoria que ia con tra os dogmas da Bíblia era, para Dar­win, motivo de enorme angústia. Não colaboravam em nada os temores de sua mulher, Emma, de que, por causa de suas ideias, Darwin fosse para o in ferno após a mone, enquanto ela iria para o céu - com isso, eles estariam condenados a viver separados na vida eterna. Darwin nunca declarou que a B,ôlia estava errada. Manteve a fé reli giosa até os último~ anos de vida, quando se declarou agnóstico - segundo seus biógrafos, sob o impacto da mone da filha Annie, aos 10 anos de idade.

Após o lançamento de A Origem das Espécies,- um best-seller que es gotou rapidamente cinco edições, os cientistas não demoraram a aceitar a proposta de que as plantas e os ani mais evoluem e se modificam ao lon go das eras. Na verdade, essa ideia chegou a ser formulada por outros cientistas, inclusive pelo avô de Darwin, o filósofo Erasmus Darwin. A noção de que a evolução das espé cies se dá pela seleção namral, no en tanto, é original de Charles Darwin, e só foi aceita integralmente depois da descobena da estrUtura do DNA, em 1953. Darwin atribuiu a transmissão de características enrre as gerações a células chamadas gêmulas, que se desprenderiam dos tecidos e viajariam pelo corpo até os órgãos sexuais. Lá chegando, seriam copiadas e passa às gerações seguintes. Os estudos feiros com ervilhas pelo monge ausrríaco Gregor Mendel na segunda metade do século XIX, mas aos quais a comunidade ciemífi ca só deu imponância no início do sé culo XX, estabeleceram a ideia básica da genética moderna, a de que as ca racterísticas de cada indivíduo são transmitidas de pais para filhos pelo que ele chamou de "farores", e hoje se conhece como genes. Com as ervilhas de Mendel, o processo concebido por Darwin teve comprovação ciemífica. A descoberra da dupla hélice do DNA, pelos cientistas James Watson e FraI;l cis Crick, em 1953, finalmeme escla receu o mecanismo por meio do qual a informação genética é rransmitida através das sucessivas gerações. Hoje, os biólogos se dedicam a responder a questões ainda em aberro no evolucio nismo, como quais são exatainenre as mudanças genéticas que provocam as adaptações produzidas pela seleção narural. É espamoso qne, enquamo continuam a desbravar, territórios na ciência, as ideias de Darwin ainda despenem tamo temor.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Darwin: avançado para sua época, mas influente até hoje

Teoria de naturalista explicou a origem das espécies.
Ideias do britânico causam controvérsia ainda nos dias de hoje.
Nicholas Wade Do 'New York Times'

Charles Darwin 

A teoria da evolução, de Darwin, se tornou a pedra fundamental da biologia moderna. Porém, durante grande parte da existência dessa teoria, nascida em 1859, até mesmo biólogos a ignoraram ou a negaram veementemente, em todo ou em parte.

O fato de os biologistas terem levado quase meio século para entender a visão de Darwin corretamente é, por si só, uma testemunha de sua mente extraordinária.

Biólogos rapidamente aceitaram a ideia da evolução, mas durante décadas rejeitaram a seleção natural, o mecanismo proposto por Darwin para o processo evolucionário. Até meados do século 20 eles ignoraram amplamente a seleção sexual, um aspecto especial da seleção natural, proposto por Darwin para explicar ornamentos masculinos, como as plumas de um pavão macho. Eles ainda discutem sobre a seleção no nível de grupos, a ideia de que a seleção natural pode operar tanto na esfera grupal quanto na individual. Darwin propôs a seleção grupal – ou algo do tipo; estudiosos diferem em relação ao quê exatamente ele se referia – castas em sociedades de formigas e moralidade nas pessoas.

Como Darwin pôde ser tão avançado em relação à sua época? Por que os biólogos foram tão lentos para entender que Darwin havia oferecido a resposta correta para tantas questões essenciais? Historiadores da ciência observaram várias características distintivas da abordagem de Darwin em relação à ciência que, além de geniais, foram responsáveis por suas ideias. Eles também apontam vários critérios não-científicos que funcionavam como bloqueios mentais, dificultando a aceitação das ideias de Darwin pelos biólogos.

 

Livre pensar

Uma das vantagens de Darwin é que ele não teve de escrever propostas para bolsas de pesquisa ou publicar 15 artigos por ano. Ele pensou profundamente sobre cada detalhe de sua teoria por mais de 20 anos antes de publicar "A Origem das Espécies", em 1859, e por 12 anos mais, antes de sua sequência, "The Descent of Man", que abordava como sua teoria era aplicada ao ser humano.

Darwin trouxe inúmeras virtudes intelectuais para a tarefa. Em vez de varrer objeções a sua teoria, ele refletia sobre ela obsessivamente, até descobrir uma solução. Ornamentos masculinos chamativos, como as plumas do pavão, eram aparentemente difíceis de serem explicados pela seleção natural, pois pareciam mais um defeito do que uma ajuda à sobrevivência. "Sempre que vejo uma pluma no pavão, fico doente", escreveu Darwin. Porém, de tanto se preocupar com a questão, ele desenvolveu a ideia da seleção sexual, de que fêmeas escolhem machos com os melhores ornamentos, e por isso os machos mais elegantes dão mais crias.

Darwin também era intelectualmente duro na queda. Ele se agarrava às consequências profundamente confusas de sua teoria, a de que a seleção natural não tem nenhum propósito ou objetivo. Alfred Wallace, que pensou sobre a seleção natural de forma independente, mais tarde perdeu a confiança no poder dessa ideia e recorreu ao espiritualismo para explicar a mente humana. "Darwin teve a coragem de enfrentar as implicações do que tinha feito, mas o pobre do Wallace não conseguiu", conta William Provine, historiador da Cornell University.

A ideia de Darwin sobre a evolução não era somente profunda, mas também muito ampla. Ele se interessava por fósseis, criação de animais, distribuição geográfica, anatomia e plantas. "Essa visão bastante abrangente o permitiu enxergar coisas que talvez os outros não tenham visto", afirma Robert J. Richards, historiador da Universidade de Chicago. "Ele tinha tanta certeza de suas ideias centrais – a transmutação das espécies e a seleção natural – que ele teve de encontrar uma forma de juntar tudo isso".

Da perspectiva atual, os principais conceitos de Darwin estão substancialmente corretos. Ele não acertou tudo. Por não conhecer as placas tectônicas, os comentários dele sobre a distribuição das espécies não são muito úteis. Sua teoria sobre hereditariedade, já que ele não conhecia a genética ou o DNA, também não vem ao caso. No entanto, seus conceitos centrais sobre seleção natural e sexual estavam corretos. Ele também apresentou uma forma de seleção em nível grupal que foi durante muito tempo descartada, mas agora tem defensores como os biólogos E.O. Wilson and David Sloan Wilson.

Darwin não estava apenas correto em relação às premissas centrais de sua teoria. Suas visões prevalecem em várias outras questões ainda em aberto. Sua ideia sobre como novas espécies se formam foi ofuscada durante muito tempo pela visão de Ernst Mayr de que uma barreira reprodutiva, como uma montanha, força uma espécie a se dividir. Porém, inúmeros biólogos agora estão retornando à ideia de Darwin de que a especiação ocorre mais frequentemente através da competição em espaços abertos, diz Richards.

Darwin acreditava na continuidade entre humanos e outras espécies, o que o levou a pensar sobre a moralidade humana como relacionada à simpatia observada entre animais sociais. Essa ideia, rechaçada por muito tempo, somente foi ressuscitada recentemente por pesquisadores como o especialista em primatas, Frans de Waal. Darwin "nunca achou a moralidade uma invenção nossa, mas um produto da evolução, uma posição, hoje, com alto crescimento em popularidade, devido à influência do que sabemos sobre o comportamento animal", afirma de Waal. "Na verdade, retornamos à visão darwiniana original".

 

Inflamável

É notável que um homem morto em 1882 ainda influencie discussões entre biólogos. Talvez seja igualmente estranho o fato de tantos biólogos terem deixado, durante décadas, de aceitar as ideias de Darwin, expressas claramente em um inglês elegante.

A rejeição se deve, em parte, porque uma grande área da ciência, incluindo os dois novos campos da genética mendeliana e da genética populacional, precisava ser desenvolvida antes que outros tentadores mecanismos de seleção pudessem ser excluídos. No entanto, houve também uma série de considerações não-científicas que afetaram o discernimento dos biólogos.

No século 19, os biólogos aceitaram a evolução, em parte porque ela implicava progresso.

"A ideia geral de evolução, particularmente se você a tomasse como progressiva e propositada, se encaixava na ideologia da época", diz Peter J.Bowler, historiador de ciência da Universidade do Queens, em Belfast. Porém, isso tornou muito mais difícil aceitar que algo tão despropositado como a seleção natural pudesse ser a força modeladora da evolução. "A Origem das Espécies" e sua ideia central foram largamente ignoradas e não voltaram à moda até a década de 1930. Nessa época, o geneticista populacional R.A. Fisher e outros mostraram que a genética mendeliana era compatível com a ideia da seleção natural, trabalhando em pequenas variações.

"Se você pensar nos 150 anos desde a publicação de 'Origem das Espécies', a obra passou metade desse tempo no deserto e metade no centro, e mesmo no centro ela não foi mais do que marginal, diz Helena Cronin, filósofa de ciência da Escola de Economia de Londres". “Essa é uma rejeição bastante abrangente a Darwin."

Darwin ainda está longe de ser totalmente aceito em ciências fora da biologia. "As pessoas dizem que a seleção natural é correta para corpos humanos, mas não quando se trata de cérebros ou comportamento", diz Cronin. "Porém, fazer uma exceção para uma espécie é negar a doutrina de Darwin em compreender todos os seres vivos. Isso inclui quase o todo dos estudos sociais – e esse é um corpo de influência considerável que ainda está rejeitando o darwinismo."

O desejo de enxergar um propósito na evolução e a dúvida de que ela realmente se aplique a pessoas eram dois critérios não-científicos capazes de levar cientistas a rejeitar a essência da teoria de Darwin. Um terceiro, em termos de seleção em grupo, pode ser a tendência das pessoas de pensar nelas mesmas como indivíduos, e não como unidades de um grupo.

"Cada vez mais, estou começando a pensar sobre o individualismo como nosso próprio preconceito cultural que explica mais ou menos por que a seleção em grupo foi tão fortemente rejeitada e ainda é tão controversa", diz David Sloan Wilson, biólogo da Universidade Binghamton.

Historiadores cientes do longo eclipse enfrentado pelas ideias de Darwin talvez tenham uma noção mais clara de sua extraordinária contribuição, se comparados aos biólogos, pois muitos deles assumem que a teoria de Darwin sempre foi vista como uma grande moldura explicativa para toda a biologia. Richards, o historiador da Universidade de Chicago, recorda que um colega biólogo "teve a chance de ler 'A Origem' pela primeira vez – a maioria dos biólogos nunca o leu – graças a uma aula que estava dando. Encontramos-nos na rua e ele observou, 'Sabe, Bob, Darwin realmente sabia muita coisa de biologia.'"

Darwin sabia muita coisa de biologia: mais que qualquer de seus contemporâneos, mais que um número surpreendente de seus sucessores. Com estudo e pensamento prolongados, ele foi capaz de intuir como a evolução funcionou sem ter acesso a todo o conhecimento científico subsequente exigido por outros para se convencerem da seleção natural. Ele teve objetividade para colocar de lado critérios com poderosa ressonância emocional, como a convicção de que a evolução deveria ter um motivo. No resultado, nós vimos com profundidade os estranhos funcionamentos do mecanismo evolutivo, uma percepção ainda não totalmente superada, mesmo um século depois de seu grande trabalho de síntese.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Tataraneto de Darwin refaz rota do ancestral no Brasil

Tataraneto de Darwin refaz rota do ancestral no Brasil

Durante expedição pelo interior do Rio, Randal Keynes "enfrenta" criacionistas

Viagem para comemorar os 200 anos de publicação de "A Origem das Espécies", em 2009, incluiu 12 cidades que pai da evolução visitou

Rafael Andrade/Folha Imagem
O lingüista Randal Keynes

ITALO NOGUEIRA
ENVIADO ESPECIAL AO INTERIOR DO RIO

Quatro gerações após o naturalista Charles Robert Darwin observar animais e plantas no interior do Rio e iniciar a viagem que o inspirou a criar a teoria da seleção natural, um de seus descendentes pôde colher evidências daquilo que a tese de seu ancestral provocou: o debate entre religião e ciência.
O lingüista Randal Keynes, 60, tataraneto de Darwin, participou na semana passada da expedição "Caminhos de Darwin", organizada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, a Casa da Ciência da UFRJ e o Departamento de Recursos Minerais do Rio para realizar eventos com estudantes nas 12 cidades por onde Darwin passou no Estado. O evento integra as comemorações no Brasil do Ano Darwin, 2009, bicentenário da publicação de sua obra-prima "A Origem das Espécies". Keynes assistiu até a um julgamento da seleção natural.
Aos 22 anos, em 1831, Charles Darwin embarcou no HMS Beagle, navio britânico que tinha como objetivo identificar rotas de navegação. Durante a viagem, de cinco anos, escreveu um diário -publicado depois no livro "A Viagem do Beagle".
As observações basearam a elaboração da teoria da seleção natural como mecanismo evolutivo. A tese sofreu resistência da igreja, pois eliminava a necessidade de ação divina para a produção das espécies.
Darwin ficou 93 dias no Rio, 16 deles no interior -o navio também passou por Salvador, Recife e Fernando de Noronha.

Tribunal
Os estudantes Gabriel de Martim, 12, e Lucas da Silva Siciliano, 12, sintetizaram a discussão mantida -explícita ou veladamente- nas cidades visitadas. Os dois representaram, respectivamente, Darwin e um papa numa peça em Araruama que encenava um "julgamento" sobre a teoria darwinista.
"Toda vez que trabalhamos a teoria da evolução, a turma se divide. Decidimos mostrar esse debate", disse Marcos Barbosa, professor de história.
Keynes disse ter visto uma boa recepção ao aprendizado da teoria de Darwin. Para ele, a seleção natural e religião não são incompatíveis. "O problema [de algumas pessoas] é aceitar que humanos estão intimamente ligados a animais. Temos de aceitar nossa natureza humana e animal."
Em Maricá, Marcos Lacerda, professor de biologia, afirmou que pode até perder o posto de paraninfo de uma turma após ensinar a teoria em sala de aula. "Tem aluno que carrega a Bíblia embaixo do braço."
Já em Conceição de Macabu, Keynes assistiu a uma peça organizada por uma criacionista: Elieth Figueira, diretora da escola onde foi realizada a recepção ao descendente de Darwin.
"Eu não gostava de Darwin. Depois que soube que ele passou pela cidade, passei a admirá-lo. Mas continuo não concordando com a teoria."
O criacionismo ganhou força no Rio principalmente após a ex-governadora evangélica Rosinha Matheus instituir a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas estaduais.
"Não é possível dizer que a questão religiosa dificulta a aprendizagem da teoria de Darwin, já que o ensino como um todo é deficiente. Mas é um obstáculo. A interferência de alguns padres e pastores dificulta a convivência da teoria com a crença religiosa", disse a bióloga Sandra Selles, da Universidade Federal Fluminense.
Ao que tudo indica, Darwin e a religião continuarão a dividir o mesmo espaço. A Fazenda Itaocaia -um dos locais por onde ele passou- pertence agora a Manoel Nunes dos Santos, 60, um empresário que se orgulha de mostrar a sua carteirinha de missionário da igreja Ministério Restaurando Vidas.
Ele diz não conhecer a seleção natural. Crê em milagres e na criação divina, mas não se importa com o que dizem de Darwin e quer manter a fazenda onde o cientista almoçou. "É história. Tenho de preservar."

Mata que naturalista viu já quase não existe


DO ENVIADO AO INTERIOR DO RIO

A mesma floresta tropical brasileira que provocou "deleite" no naturalista Charles Darwin em 1832 é hoje motivo de preocupação para o seu tataraneto, o lingüista Randal Keynes, 60. As 12 cidades percorridas por Darwin no século 19 no interior do Rio de Janeiro -trajeto refeito por seu Keynes na semana passada- mantêm menos de um quinto de sua vegetação original, de acordo com a ONG SOS Mata Atlântica.
"Deleite, entretanto, é uma palavra fraca para expressar os sentimentos de um naturalista que, pela primeira vez, passeia sozinho numa floresta brasileira. Em meio à profusão de objetos notáveis, a exuberância geral da vegetação ganha longe", escreveu Darwin em seu diário.
Quase dois séculos depois, o município mais devastado da região é Araruama, onde resta 3,23% da mata original. O mais conservado é Casimiro de Abreu (30% remanescentes).
Foi a caminho de Araruama que Darwin descreveu uma floresta onde "as árvores eram muito altas e notáveis pela brancura de seus troncos, comparadas com as da Europa". "Ele provavelmente se referia ao ubatã", diz Cyl Farney, pesquisador do Jardim Botânico. "A planta ainda existe, mas está muito dispersa. Seria mais difícil ele perceber uma aglomeração dessa espécie hoje. O que resiste são fragmentos espaçados do que Darwin viu."
Já vegetação de manguezal, que ainda tem alguns trechos preservados, é ameaçada pela ocupação irregular às margens das lagoas. Para Keynes, a situação merece atenção para não se tornar como outros lugares do mundo onde "a riqueza da vegetação é só história".
"A mata remanescente é suficiente para conservar, restaurar e para as pessoas entenderem o que Darwin viu quando esteve aqui", diz. "Esse ambiente foi o laboratório de Darwin."
Há regiões mais vistosas, como a Serra do Mato Grosso, que o naturalista descreveu em suas anotações. "Temos núcleos de vegetação preservados ao longo do caminho, mas dependem da criação de parques para se manterem", diz Kátia Mansur, geóloga do Departamento de Recursos Minerais.
As margens do rio São João, em Casimiro de Abreu, mantém a vegetação de mangue, embora esteja ocupada em alguns trechos por casas. Ambientalistas locais dizem que o rio recebe esgoto, mas mesmo assim moradores se banham lá.

"Cada hectare cultivado"
O casario antigo também sobrevive com dificuldade. A fazenda Campos Novos, sede da Secretaria de Agricultura de Cabo Frio, sofre com cupins e precisa de restauração.
"A mata atlântica foi importante para a ciência", diz o diretor do Departamento de Popularização da Ciência e Tecnologia do MCT, Ildeu Moreira. "A biodiversidade foi fonte de estudo para Darwin elaborar a principal teoria da história da ciência. É importante preservá-la, pois há muito a ser estudado sobre ela."
Em seu diário, Darwin descreve uma fazenda da região de Macaé como "o trecho mais interior de terreno aberto até as montanhas". "Dá para imaginar em que estado este país ficará quando cada hectare for cultivado." Pesquisadores acreditam que o cientista se referia à expectativa do progresso e da prosperidade. Porém, mais de 80% do que o naturalista viu foi devastado sem que essa perspectiva fosse atendida. (IN)

O que Jane Austen diria a Charles Darwin


Moral implícita da literatura tem papel evolutivo nas sociedades modernas, sugere estudo de psicólogos

PRIYA SHETTY
DA "NEW SCIENTIST"

Por que o hábito de contar histórias perdura através do tempo e das culturas?
Talvez a resposta esteja em nossas raízes evolutivas. Um novo estudo sobre a forma com que as pessoas reagem à literatura vitoriana sugere que os romances funcionam como uma espécie de cimento social, fortalcendo os tipos de comportamentos que beneficiam as sociedades. A literatura "pode condicionar a sociedade continuamente de forma que lutemos contra impulsos básicos e trabalhemos de forma mais cooperativa", afirma Jonathan Gottschall do Washington and Jefferson College, da Pensilvânia.
Gottschall e seu co-autor Joseph Carroll, da Universidade do Missouri em Saint Louis, estudam como as teorias de evolução de Darwin se aplicam à literatura. Junto de John Johnson, psicólogo da Universidade do Estado da Pensilvânia em DuBois, os pesquisadores pediram a 500 pessoas que preenchessem um questionário sobre 200 romances clássicos vitorianos. Os voluntários tinham de definir os personagens como protagonistas ou antagonistas. Depois, deveriam descrever suas personalidades e motivações, dizendo, por exemplo, se eram conscienciosos ou sedentos por poder.

Elizabeth x Drácula
A equipe descobriu que os personagens se encaixavam em grupos que refletiam a dinâmica igualitária de sociedades de caçadores-coletores, nas quais a dominância de indivíduos era suprimida em prol do bem geral. Os resultados do estudo estão na revista "Evolutionary Psychology" (vol. 4, pág. 716).
Protagonistas como Elizabeth Bennett, de "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen, tinham pontuação alta em concienciosidade e dedicação. Por outro lado, antagonistas como o conde Drácula, do livro de Bram Stoker, pontuavam mais como caçadores de status e em dominância social.
Nos romances, o comportamento dominante é "poderosamente estigmatizado", afirma Gottschall. "Os malvados e as malvadas são apenas máquinas de dominação; estão obcecados por continuar prosseguindo nisso, raramente têm comportamento pró-social."
Apesar de pouca gente no mundo de hoje viver em sociedades de caçadores-coletores, "a dinâmica política operante nesses romances, ou seja, a oposição básica entre comunitarismo e comportamento de dominação, é um tema universal", afirma Carroll. Christopher Boehm, um antropólogo cultural que Carrol reconhece como importante influência em seu estudo, concorda. "Democracias modernas, com sua separação entre os poderes e equilíbrio entre eles, estão promovendo um ideal igualitário."
Nas respostas dos voluntáriso às questões, poucos personagens eram julgados ao mesmo tempo bons e maus, como Heathcliff de "O Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Brontë, ou o sr. Darcy, de "Orgulho e Preconceito". "Eles revelam a pressão que é exercida sobre a manutenção da ordem social total", afirma Carroll.

Lição de moral
Boehm e Carroll dizem crer que os romances tenham o mesmo efeito que os contos com lição de moral das sociedades antigas. "Assim como os caçadores-coletores contavam sobre trapaça e intimidação para manter as pessoas mobilizadas no objetivo de evitar que os malvados vencessem, os romances nos direcionam para os mesmos problemas", afirma Boehm. "Eles têm uma função que continua a contribuir para a qualidade e para a estrutura da vida em grupo."
"Talvez as narrativas -sejam as da televisão ou as de contos populares- sirvam na verdade a uma função evolutiva específica", diz Gottschall. "Elas não são apenas subprodutos da adaptação evolutiva."  

Celebrando (o estudo d)a vida



Antes da teoria da evolução, não se podia explicar a diversidade
No início do ano, escrevi sobre a festa dos céus, o Ano Internacional da Astronomia, que será celebrado durante 2009 pelo mundo afora. Só o congresso da União Internacional da Astronomia reunirá cerca de 6 mil astrônomos no Rio em agosto. Mas essa não é a única festa da ciência neste ano. A biologia também tem muito o que celebrar. Este é o ano do bicentenário do nascimento de Charles Darwin e o 150 anos da publicação de seu livro revolucionário "A Origem das Espécies", onde o naturalista elaborou os princípios de sua teoria da evolução das espécies.
Poucos nomes na história da ciência são tão celebrados quanto Darwin. O que Galileu, Newton e Einstein representam para a física, Dalton e Lavoisier para a química, Darwin representa para a biologia. Antes dele, não haviam explicações plausíveis para a incrível diversidade da vida que vemos na natureza, de micróbios unicelulares, plantas e peixes aos insetos, aves e mamíferos. No mundo ocidental, a explicação aceita era bíblica: Deus criou a vegetação no terceiro dia, os peixes e as aves no quinto, e os animais terrestres e o homem no sexto. Mesmo que fósseis de animais estranhos (leia-se dinossauros e mamíferos terrestres agigantados) fossem conhecidos, o argumento para a sua ausência invocava o Dilúvio e a Arca de Noé. Pelo jeito, os monstros não foram bem recebidos no grande barco. Talvez alguns teólogos oferecessem razões mais sofisticadas, mas essa era a opinião de muitos.

De todas as suas características, as que Darwin mais celebrava eram a meticulosidade e a capacidade de perceber detalhes quando outros não os viam. Quando jovem, atravessou o mundo no navio Beagle, colhendo espécies diversas da flora, passando horas observando o comportamento da fauna local, colecionando fatos e anotações. Ficou muito impressionado com a beleza do Brasil.
Sua curiosidade pela riqueza com que a vida se manifestava à sua volta e a paixão pelo conhecimento davam-lhe a infinita paciência necessária para observar as menores variações dentre espécies de acordo com o ambiente e o clima, a importância da geologia na determinação das espécies de uma região, a complexa relação entre a flora e a fauna.

Profundamente influenciado pelo geólogo Charles Lyell, que considerava seu mentor, Darwin aos poucos percebeu que tal riqueza nas espécies só poderia ser possível se pequenas variações ocorressem ao longo de enormes intervalos de tempo. A filosofia de Lyell pregava que as rochas terrestres representam a sua longa história, registrando nas suas propriedades as várias transformações que sofreram ao longo dos milênios. Os mesmo processos que sofreram no passado continuam ativos no presente. A partir de suas meticulosas observações, Darwin concluiu que algo semelhante ocorria com os seres vivos; eles também sofriam pequenas modificações ao longo do tempo.

As que facilitavam a sua sobrevivência seriam passadas de prole em prole mais eficientemente, enquanto que aquelas que dificultavam a sobrevivência dos animais seriam aos poucos eliminadas. Com isso, após muitas gerações, a espécie como um todo se alteraria, tornando-se gradualmente distinta de seus ancestrais. A funcionalidade dos bicos de certos pássaros, por exemplo, ilustra bem a adaptabilidade de acordo com o ambiente.

Esse processo de seleção natural forneceu, pela primeira vez na história, um mecanismo racional capaz de explicar a multiplicidade da vida e a sua ligação com o passado. O legado de Darwin é, antes de mais nada, uma celebração da liberdade que nos é acessível quando nos dispomos a refletir sobre o mundo em que vivemos.  

Lições de um observador


Bisneto de Charles Darwin diz que biólogos modernos publicam dados sem saber o que eles são e que paciência na análise era principal virtude científica do pai da teoria evolutiva

Charles Darwin (1809-1882) não sabia o que era DNA, não rastreava animais usando GPS e não levou câmera fotográfica digital em sua viagem, mas sua maneira de trabalhar ainda tem muito a ensinar aos biólogos. Essa é a opinião de alguém que -seja por cultura ou por genética- herdou um pouco do talento do grande naturalista.
Para Richard Darwin Keynes, 89, bisneto do criador da teoria da evolução, as notas que o cientista tomou durante a viagem do HMS Beagle, de 1831 a 1835, são exemplo de como pensar sobre informação nova quando ainda não se sabe que rumo de raciocínio tomar. As vésperas da comemoração do bicentenário de Darwin (12 de fevereiro), ele faz questão de lembrar seu bisavô não apenas pelo conhecimento que deixou construído, mas pelo modo com que o construiu.
Keynes, que também é cientista, já trabalhou no Brasil e tem importantes estudos sobre a fisiologia dos peixes elétricos. Leia abaixo entrevista que o biólogo herdeiro de Darwin concedeu a Folha por telefone, de sua casa em Londres.

 

FOLHA - Hoje a biologia sofre um certo revisionismo por conta da epigenética -estudo de como organismos podem herdar características sem usar o DNA. O sr. acha que isso ainda pode estar alinhado com o que Darwin pensava, já que ele não conhecia mesmo o DNA?
KEYNES -
Bom, é difícil avaliar isso, e o problema é que Darwin nunca conheceu mesmo os mecanismos pelos quais as coisas são herdadas. E nunca avançou muito nisso. Foi só o enorme aumento do volume de pesquisas em todo o mundo sobre os mecanismos de hereditariedade que tornou a determinação da estrutura do DNA possível, também com ajuda das descobertas de [Gregor] Mendel. Mas Darwin nunca soube sobre Mendel. Mendel veio a Inglaterra na época, mas não conversou com Darwin.

FOLHA - Apesar de ‘A Origem das Espécies‘ ter recebido esse nome, alguns biólogos apontam que o livro não chega a explicar a especiacao. Sua grande contribuição teria sido o conceito de seleção natural. O sr. acredita que ha base hoje para explicar o que afinal leva uma espécie a se dividir em duas?
KEYNES -
Bom, Darwin sabia disso, e isso não significa que ele estivesse errado. Neste caso, também, ele apenas não conhecia os mecanismos. Não é só o DNA que ele desconhecia, há muito mais coisas sobre como as coisas acontecem que ele não sabia. Um pesquisador chamado [Peter] Grant, que trabalha há muito tempo nas Galápagos com os tentilhões, estudou o mecanismo de especiação nos pássaros lá durante vinte e poucos anos. Analisou seus bicos, que sabemos que são importantes para o tipo de alimentação deles e sobre a maneira como evoluíram.
Esse processo depende de mudanças nos arredores. Mudanças nas coisas com que eles se alimentavam, além de outras coisas. E isso tudo foi estudado por Darwin apropriadamente, mas só agora foi aprofundado por Grant e sua esposa [Rosemary], professores na Universidade de Princeton.

FOLHA - Alguns biólogos hoje estão questionando a utilidade da cladística tradicional -a subdivisão de grupos de seres que evoluem se ramificando, representada por gráficos em forma de árvore. Dizem que isso não reflete a complexidade que envolve a separação entre duas espécies, porque não é possível determinar um ponto exato de separação. O sr. acha que ainda há espaço para os desenhos de árvores de espécies como Darwin fez?
KEYNES -
Não sei muitos detalhes sobre isso. Acredito que seja verdade, mas as mudanças ocorrem espaços de milhões de anos, e muitos organismos não podem mais ser estudados hoje. Nessa escala de tempo, essa forma de representação [a cladística] faz sentido.

FOLHA - Muitos professores de biologia costumam contar a história sobre como Darwin estava observando os tentilhões em Galápagos e de repente teve seu momento de eureca, concebendo a teoria da evolução. Hoje sabemos que na verdade ele levou muitos anos. É possível reconstruir sua linha de raciocínio?
KEYNES -
É verdade. A coisa não ocorreu daquela forma súbita. Não sei se eu conseguiria dizer algo breve sobre isso que acrescente algo. Eu me lembro de uma pequena anotação que ele deixou sobre um pequeno inseto que ele descobriu no estreito de Magalhães, na costa da Argentina. Ele ficou muito entusiasmado quando descobriu esse animal. Foi a primeira vez que ele viu, nesses animais muito primitivos, como eles se comunicam com seus similares e como conseguem agir de maneira correta. Isso é um passo muito importante para entender especiação e evolução.
Em 1934, ele notou nessa espécie alguns chifres, bonitos, que ela usava para capturar comida. E ele ficou muito entusiasmado quando escreveu sobre o animal e sublinhou tudo. Mas depois ele não discutiu mais isso, e nunca mais fez referências a esse animal específico. Esse espécime existe no Museu de Zoologia em Cambridge. Ele ficou mais entusiasmado com isso do que com qualquer outro animal que ele vira e descrevera em suas notas. E isso foi antes de ele ter a ideia da evolução. É curioso que ele não o tenha mencionado depois, mas na época da descoberta ele realçou quão importante isso era. Isso é absolutamente importante para entender a evolução, e ele pensou nisso antes da evolução.

FOLHA - A coisa mais impressionante sobre Darwin talvez seja ver hoje quão bom observador ele era. Hoje, que os biólogos usam câmeras e ferramentas modernas, o sr. acha que o modo com que ele trabalhava ainda pode ter algo a ensinar?
KEYNES -
Sim, certamente. Eu gastei um longo tempo, há muitos anos, estudando e transcrevendo todas as notas que ele tomou a bordo do Beagle. Publiquei tudo num grande volume. Quem as lê, percebe o modo com que o cérebro dele funcionava. O modo com que sua cabeça pensava sobre como o animal se locomove e coisas assim. Isso é muito importante.
E é importante ver que ele foi uma das primeiras pessoas a estudar comportamento animal de modo apropriado. Ele foi uma das primeiras pessoas a estudar ecologia -a relação dos animais com seu ambiente.
O livro sobre essas notas está publicado. E não é muito caro.

FOLHA - O sr. disse à Folha cinco anos atrás que estava preparando uma nova edição do ‘Origem das Espécies‘. Ela será publicada agora?
KEYNES -
Não exatamente. Escrevi a introdução de uma edição da Folio Society, que não a vende de maneira convencional. Produzimos uma das melhores edições ilustradas que existem, acho. Infelizmente não se pode comprá-la sem ser membro da Folio Society.

FOLHA - A família Darwin está planejando algo especial neste ano, além de integrar as comemorações acadêmicas oficiais? KEYNES - Sim. Há várias coisas acontecendo. Daqui uma semana estou indo para a Down House, em Kent, que é a casa onde Darwin viveu por muitos anos. Está sendo restaurada agora, e estão tentando deixar seu interior da maneira como era quando ele morou lá. Recuperaram vários objetos de Darwin. Há até livros para crianças que eram da filha de Darwin. São exemplares que minha mãe recebeu de uma senhora chamada Henrietta Litchfield, que cuidava dela. E a Down House está sendo reaberta agora. Não é muito longe de Londres, e eles conseguiram reunir mesmo diversas coisas originais de Darwin, como móveis etc.

FOLHA - A tradição científica continua seguindo em sua família? O sr. já havia me falado sobre a possibilidade de um de seus netos seguir carreira em biologia.
KEYNES -
Ainda não tenho nenhum neto que tenha completado o doutorado. Um deles está neste momento visitando Ilha de Páscoa e Galápagos, mas não sei... É possível que ainda haja novos biólogos na família Darwin. Meu avô, que era um dos filhos dele, se tornou matemático. Um de meus primos era fisiologista -eu sou fisiologista também- e temos vários cientistas conhecidos na família. Mas é um pouco difícil você trabalhar com evolução quando se é descendente de alguém como Darwin.

FOLHA - Hoje há um grupo de cientistas religiosos não fundamentalistas que tenta conciliar a crença religiosa com a crença na evolução, mas sem adotar o criacionismo. Isso é o que Darwin tentou fazer?
KEYNES -
Bom, ele não tinha essa crença, essa cristandade. E isso era difícil para ele porque sua esposa certamente tinha essa crença. E essa é uma das razões pelas quais ele talvez tenha demorado tanto a publicar o ‘Origem das Espécies‘. Mas ainda é uma questão: saber por que ele esperou tanto para publicar após ter tido suas ideias. Isso é muito diferente do que ocorre hoje em dia. As pessoas têm publicado suas coisas rápido demais, até mesmo antes de conseguirem alinhar suas ideias. Darwin era o inverso disso. Eu acho que a razão pela qual ele demorou tanto é que ele queria mesmo organizar melhor as informações que ele mesmo havia coletado sobre as vidas dos animais.

FOLHA - Todos conhecem hoje o legado de conhecimento que Darwin produziu. O que ele deixou de mais importante em relação a seu método? Sua técnica de observação ainda é útil para biólogos de hoje?
KEYNES -
Acho que sim. É claro que ele não tinha as ferramentas modernas de hoje, mas se você lê suas notas, pode ver que todo o tempo ele estava trabalhando com o objetivo simples de entender como o animais vivem. Acontece que ele não estava trabalhando no aspecto mendeliano, porque não conhecia isso. Mas uma das coisas mais impressionantes sobre Darwin é ver o quanto ele descobriu de coisas corretas sobre hereditariedade sem conhecer Mendel. Mendel veio até aqui, mas não chegou a conversar com Darwin. E Darwin não poderia tê-lo encontrado depois. Após a viagem do Beagle, Darwin nunca viajou para outros países, só para alguns lugares dentro da Inglaterra.

Hoje nós sabemos sobre os mecanismos de hereditariedade de todas as características dos animais, mas nós não sabemos como se pensava sobre isso no passado, porque para isso seria preciso voltar no tempo, milhões de anos, para descobrir como tudo aconteceu.