sábado, 21 de março de 2009

A Darwin que é de Darwin

Charles Darwin é um de paradoxo moderno. Não sob a ótica da ciência, área em que o seu trabalho é plenamente aceito e celebrado como ponto de partida para um se grau de conhecimento sem precedentes sobre os seres vivos. "Sem a teoria da evolução a moderna biologia, incluindo a medicina e a biotecnologia simplesmente não faria sentido. O enigma reside na relutância quase um de mal-estar que suas idéias causam entre um vasto contingente de pessoas, algumas delas fervorosamente religio sas, outras nem tanto. Veja o que ocor re nos Estados Unidos. O país dispõe das melhores universidades do mundo, detém metade dos cientistas premia dos com Nobel e registra mais pa tentes do que todos os seus concorren tes diretos somados. Ainda assim só um em cada dois americanos acredita que o homem possa ser produto de mi lhões de anos de evolução. O outro considera razoável que nós, e todas as coisas que nos cercam, estejamos aqui por dádiva da criação divina. Mesmo na Inglaterra, país natal de Darwin, o fato de ele ser festejado como herói nacional não impede que um em cada quatro ingleses duvide de suas idéias ou as veja como pura enganação. Na semana em que se comemora o bicen tenário de nascimento de Darwin e, por coincidência, no ano do sesqui centenário da publicação de seu livro mais célebre, A Origem das Espécies, como explicar a persistente má vonta de' para com suas teorias em países campeões na produção científica?

Para investigar a razão pela qual as ideias de Darwin ainda são vistas co mo perigosas, é preciso recuar no pas­sado. Quando o naturalista inglês pela primeira vez propôs suas reses sobre a evolução pela seleção natural, a maio ria dos cientistas acreditava que a Ter ra não tivesse mais de 6.000 anos de existência, que as maravilhas da natu reza fossem uma manifestação da sa­bedoria divina. A hipótese mais aceita sobre os fósseis de dinossauros era que se tratava de cria turas que perderam o embarque na Arca de Noé e foram extintas pelo dilúvio bíblico. A publicação de A Origem das Espécies teve o efeito de um tsunami na Inglaterra vitoriana. Os biólo gos se viram desmentidos em sua cer­teza de que as espécies são imutáveis. A Igreja ficou perplexa por alguém desafiar o dogma segundo o qual Deus criou o homem à sua semelhança e os ani mais da forma como os conhecemos. A so ciedade se chocou com a tese de que o homem não é um ser especial na natureza e ainda por cima, tem parentesco com os macacos. Havia na quele momento, com preensível contestação científica às novas idéias. Darwin havia reunido uma quantidade impressionante de provas empíricas - mas ainda restavam mui tas questões sem resposta.

O primeiro exemplar a sair da" gráfica foi enviado a sir lobo Herscbel, um dos mais famosos cientistas ingleses vivos em 1859. Darwin tinha tanta ad­miração por ele que o citou no primeiro parágrafo de A Ori gem das Espécies. Herscbel não gostou do que leu.. Ele não podia acreditar sem provas científicas tangíveis, que as es pécies podiam surgir de varia ções ao acaso. Pressionado, Dar win disse que, se alguém lhe apontasse um único ser vivo que não tivesse um ascendente, sua teoria poderia ser jogada no lixo. O que se encontrou em profusão foram evidências da correção do pensamento de Darwin em seus pontos essenciais. Hoje, para entender a história da evolução. sua narrtiva e mecanismo, os modernos darwinistas não precisam conjemrar sobre o funcionamento da hereditariedade. Eles simplesmente consultam as estruturas genéticas. As evidências que susten tam o darwinismo são agora de grande magnitude - mas, estranhameme, a ansiedade permanece.

Outros pilares da ciência moderna, o como a teoria da relatividade, de Albert Einstein não suscitam tanta desconfiança e hostilidade. Raros são aqueles que se sentem incomodados diante a impossibilidade de viajar mais rápido que a luz ou saem à rua em protesto contra a afirmação de que a gravidade deforma o espaço-tempo. Evidentemente, o núcleo incandescente da irritação causada por Darwin tem conotação religiosa. A descoberta dos mecanismos da evolução enfraqueceu o único bom argumento disponível pa ra a existência de Deus. Se Ele não é responsável por todas essas maravilhas da natureza, sua presença só poderia ser realmente sentida na fé de cada in divíduo. Mas isso não explica tudo. Em 1920, ao escrever sobre o impacto da divulgação das ideias darwinistas, Sigmund Freud deu seu palpite: "Ao longo do tempo, a humanidade teve de suportar dois grandes golpes em sua auto estima. O primeiro foi constatar e que a Terra não é o centro do universo. e o segundo ocorreu quando a biologia desmentiu a natureza especial do homem e o relegou à posição de mero descendente do mundo animal. Pelo ( raciocínio do pai da psicanálise a rejeição à teoria da evolução seria uma forma de compensar o "rebaixamento" da espécie humana contido nas ideias de Copémico e Darwin).

O biólogo americano Stephen Jays Gould, um dos grandes teóricos do evolucionismo no século xx, morreu em 2002, dizia que as teorias de Darwin são tão mal compreendidas não porque sejam complexas, mas porque muita gente evita compreendê-las. Concordar com Darwin significa aceitar que a existência de todos os seres vivos é regida pelo acaso e que não há nenhum propósito elevado no caminho as do homem na Terra. Disse a VEJA o biólogo americano David Sloan WIlayson, da Universidade Binghamton: "As grandes ideias e teorias são aceitas ou rejeitadas popularmente por suas conseqüências, não pelo seu va lor intrínseco. Infelizmente, a evolu ção é percebida por muitos como uma arma projetada para destruir a religião, a moral e o potencial dos seres huma nos". Uma pesquisa publicada pela revista New Scienst sobre a aceitação do darwinismo ao redor do mundo mostra que os mais ardentes defenso res da evolução estão na Islândia, Di­namarca e Suécia. De modo geral. a crença na evolução"' é inversamente proporcional à crença em Deus. Mas a pesquisa encontrou outra configuração interessanre: os habitantes dos países ricos acreditam menos em Deus que aqueles que vivem em países inseguros. Isso pode significar que a crença em Deus e a rejeição do evolucionismo são mais intensas nas sociedades a sujeitas às pressões darwinistas. como c escreveu a revista Economist.

A teoria da evolução causa mal-estar em muita gente - mas só algumas confissões evangélicas conveneram o darwinismo em um inimigo a ser combatido a todo custo. Como essas reJi- t gires são poderosas nos Estados Unidos. é lá que se trava o mais renbido COID- ( bate dessa guerra santa. Ciência e reli- I gião já andaram de mãos dadas pela t maior parte da história da bumanidade (veja reportagem na pág. 88). Mas es se nó se desatou há dois séculos e Dar win Joi um dos responsáveis por esse . divórcio amigável. com nítidas vanta gens para ambos os lados.

Desde o ano passado, o bordão en ITe os criaciooistas americanos é "li berdade acadêmica". A ideia que ten tam passar é que o darwinismo é ape nas uma teoria. não um fato, e ainda por cima está cbeio de lacunas e é ca reme de provas conclusivas. Sendo assim. não há por que Darwin mere cer maior destaque que o criacionis mo. O argumemo é de evidente má-fé. Em seu significado comum. teoria é sinônimo de hipótese, de acbismo. A teoria da evolução de Darwin usa o termo em sua conotação cienúfica. Nesse caso. a teoria é uma síntese de um vasto campo de conhecimentos formado por hipóteses que foram tes tadas e comprovadas por leis e fatos cienúficos. Ou seja. uma linha de ra ciocínio confirmada por evidências e experimentos. Por isso. quando é en sinado numa aula de religião. o Gêne sis está em local apropriado. Coloca do em qualquer outro contexto. sóserve para confundir os esmdantes so bre a natureza da ciência.

A ciência não tem respostas para todas as perguntas. Não sabe. por exemplo, o que existia antes do Big Bang. que deu origem ao universo há 13,7 bilbões de anos. Nosso conheci memo só começa três minutos depois do evento. quando as leis da física passaram a existir. Os cien tistas também não são capa zes de recriar a vida a partir de uma poça de água e al guns elementos químicos o que se acredita ter aconte.o~ cido 4,5- bilhões de anos"" atrás. A mão de Deus teria contribuído para que esses eventos primordiais tenham ocorrido? Não cabe à ciência responder enquanto não houver pro vas científicas do que aconteceu. O fato é que a luta dos criacionistas con tra Darwin nada tem de científica. Em sua profissão de fé, eles têm o pleno direito de acreditar que Deus criou o mundo e tudo o que existe nele. Coisa bem diferente é querer impingir essa maneira de enxergar a natureza às crianças em idade escolar, renegando fatos comprovados pela ciência. Essa atitude nega às crianças os fundamen tos da razão, substituindo-os pelo pensamento sobrenatural.

Manda o bom senso que não se misturem ciência é religião. A primeira perscruta os mistérios do mundo físi­co; a segunda, os do mundo espirimal. Elas não necessanwente se elimi nam. Há cientistas eminentes que creem em Deus e não veem nisso ne nhuma contradição com o darwinismo. O mais conhecido deles é o biólogo americano Francis Collins, um dos responsáveis pelo mapeamen to do DNA..humano, Diz ele: "Usar as ferramentas da ciên cia para discutir religião é uma atitude imprópria e equivocada. A Bíblia não é um livro científico. Não deve ser levado ao pé da letra". A Igreja Católica aceitou há bastante tempo que sua atri­buição é cuidar da alma de seu I bilhão de fiéis e que o Mundo físico é mais bem ex plicado pela ciência. O Vati­cano até organizará em março o simpósio "Evolução bioló gica: fatos e teorias – Uma avaliação crítica 150 anos depois de A Origem das Espécies".

Em A Origem das Espécies, num raciocínio que cabe em poucas linhas mas expressa ideias de alcance gigan tesco, Darwin produziu uma revolução que alteraria para sempre os ru mos da ciência. Ele mostrou que todas as espécies descendem de um ances­tral comnrn. uma forma de vida sim ples e prilnitiva. Darwin demonstrou também que, pelo processo que bati zou de seleção naturaI. as espécies evoluem ao longo das eras, sofrendo mutações aleatórias que são transmi tidas a seus descendentes. Essas mu­tações podem determinar a permanên cia da espécie na Terra ou sua extin ção - dependendo da capacidade de adaptação ao ambiente. Uma década depois da publicação de seu livro se minal, o impacto das ideias de Darwin se multiplicaria por mil com o lança mento de A Descendência do Homem. obra em que mostra que o ser humano e os macacos divergiram de um mes mo ancestral, há 4 milhões de anos.

O embate entre evolucionistas e criacionistas teria causado um des gosto profundo a Darwin. que era religioso e chegou a se preparar pa ra ser pastor da Igreja Anglicana. Esse plano foi interrompido pela fantástica aventura que prorago nizou entre 1831 e 1836, em viagem a bordo do Beagle, um pequeno navio de exploração científica, numa das passagens mais conhecidas da história da ciência. Aos 22 anos, Darwin embarcou no Beacle para servir de acompanhante ao capitão do barco, o aristocratainglês Robert Titzroy. Durante a viagem, que se estendeu por quatro continentes, Darwin deu vazão à curiosidade sobre o mundo natural que o acompanhava desde a infância. Até a volta à Inglaterra, havia recolhido 1526 espéices de frascos com alcool e 3907 esp´´ecimes preervados. Darwin escreveu um diário de 770 páginas, no qual relata suas experiências nos lugares por onde passou. No brasil, visitou o Rio de Janeiro e a Bahia, extasiando-se com a biodiversidade da mata Atlancica - mas ficou horrorizado com a maneira como os escravos eram tratados.

Durante a viagem. Darwin fez as principais observações que o levariam a formular a teoria da evolução pela seleção natural. Grande parte delas te ve como cenário as llbas Galápagos, no Oceano Pacífico. Lá, reparou que muitas das espécies eram semelbantes às que existiam no conlinente, mas apresenravam pequenas diferenças de uma ilha para OUIra.. Chamaram sua atenção. principalmente. os rentiJhões. pássaros cujo bico apresentava um formato em cada ilha. de acordo com o tipo de alimentação disponível. A única explicação para isso seria qu'e as primeiras espécies de animais che garam às ilhas vindas do conlinente. Depois. desenvolveram características diferentes.. de acordo com as condi ções do ambiente de cada ilha. Era a prova da evolução. Mais recentemen te. ao eswdarem os mesmos tentiJhões das llbas Galápagos. grupos de biólo­gos observaram a evolução ocorrer em tempo real. Os pássaros evoluíam de um ano para outro. de acordo com as mudanças nas condições climáticas da ilha. Darwin. que definiu a evolu ção como um processo invariavelmen te longo. através das eras. ficaria es­pantado com as novas descobertas em seu parque de diversões cienúfico.

Ao retomar à Inglaterra. após a viagem do Beagle. Darwin foi amadu recendo a teoria da evolução e come­çou a escrever A Origem das Espécies dois anos depois, em 1838. Só publi cou o volume. no entanto, após 21 anos. Ele sabia do potencial t}xplosivo de suas ideias na ultraconservadora Inglaterra do século XIX - da qual, ele próprio, era um legítimo represen tante. Elaborar uma teoria que ia con tra os dogmas da Bíblia era, para Dar­win, motivo de enorme angústia. Não colaboravam em nada os temores de sua mulher, Emma, de que, por causa de suas ideias, Darwin fosse para o in ferno após a mone, enquanto ela iria para o céu - com isso, eles estariam condenados a viver separados na vida eterna. Darwin nunca declarou que a B,ôlia estava errada. Manteve a fé reli giosa até os último~ anos de vida, quando se declarou agnóstico - segundo seus biógrafos, sob o impacto da mone da filha Annie, aos 10 anos de idade.

Após o lançamento de A Origem das Espécies,- um best-seller que es gotou rapidamente cinco edições, os cientistas não demoraram a aceitar a proposta de que as plantas e os ani mais evoluem e se modificam ao lon go das eras. Na verdade, essa ideia chegou a ser formulada por outros cientistas, inclusive pelo avô de Darwin, o filósofo Erasmus Darwin. A noção de que a evolução das espé cies se dá pela seleção namral, no en tanto, é original de Charles Darwin, e só foi aceita integralmente depois da descobena da estrUtura do DNA, em 1953. Darwin atribuiu a transmissão de características enrre as gerações a células chamadas gêmulas, que se desprenderiam dos tecidos e viajariam pelo corpo até os órgãos sexuais. Lá chegando, seriam copiadas e passa às gerações seguintes. Os estudos feiros com ervilhas pelo monge ausrríaco Gregor Mendel na segunda metade do século XIX, mas aos quais a comunidade ciemífi ca só deu imponância no início do sé culo XX, estabeleceram a ideia básica da genética moderna, a de que as ca racterísticas de cada indivíduo são transmitidas de pais para filhos pelo que ele chamou de "farores", e hoje se conhece como genes. Com as ervilhas de Mendel, o processo concebido por Darwin teve comprovação ciemífica. A descoberra da dupla hélice do DNA, pelos cientistas James Watson e FraI;l cis Crick, em 1953, finalmeme escla receu o mecanismo por meio do qual a informação genética é rransmitida através das sucessivas gerações. Hoje, os biólogos se dedicam a responder a questões ainda em aberro no evolucio nismo, como quais são exatainenre as mudanças genéticas que provocam as adaptações produzidas pela seleção narural. É espamoso qne, enquamo continuam a desbravar, territórios na ciência, as ideias de Darwin ainda despenem tamo temor.