sábado, 19 de março de 2011

Samuel Bowles - "Charles Darwin estava errado"

Entrevista - IstoÉ
N° Edição:  2158 |  18.Mar.11 - 21:00 |

Samuel Bowles

"Charles Darwin estava errado"
Economista americano critica a teoria da evolução e diz que os seres humanos progrediram graças aos grupos mais altruístas
Solange Azevedo
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GENEROSIDADE
Bowles afirma que o mundo está se tornando mais altruísta
O americano Samuel Bowles, 71 anos, é dono de um currículo invejável. Ph.D. em economia pela Universidade Harvard, onde também foi professor durante quase uma década, atualmente ele dirige o Programa de Ciências Comportamentais do Instituto Santa Fé, na capital do Novo México, e leciona na Universidade de Siena, na Itália. Autor de diversos livros, Bowles foi conselheiro econômico em Cuba, na Grécia, do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela e dos ex-candidatos à Presidência dos Estados Unidos Robert F. Kennedy e Jesse Jackson. Seus estudos sobre a evolução genética e cultural dos humanos têm repercutido em publicações de prestígio, como as revistas “Nature” e “Science”, porque põem em dúvida nada menos do que a teoria da evolução, de Charles Darwin, e a ideia de que os homens são inteiramente egoístas. “O comportamento humano é muito mais complexo do que a teoria da evolução supõe”, diz Bowles. “A seleção natural pode, sim, produzir espécies altruístas e cooperativas.”
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"Filósofos e advogados fizeram e ainda fazem leis
baseadas no pressuposto de que as pessoas
são completamente egoístas”
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“Há muita gente fazendo coisas incríveis para
defender uma causa. As manifestações nas ruas do Cairo,
no Egito, são um claro exemplo disso"
 

Istoé - O sr. defende a ideia de que a gentileza foi fundamental para a evolução humana. Por quê? 
Samuel Bowles - A teoria da sobrevivência do mais gentil é uma crítica à teoria da sobrevivência do mais apto, de Charles Darwin. Diversas pesquisas feitas nos últimos anos, muitas delas por mim, têm mostrado que a seleção natural pode, sim, produzir espécies altruístas e cooperativas – em vez de seres humanos inteiramente egoístas. Darwin estava errado. 

Istoé -
Como o sr. chegou a essa conclusão? 
Samuel Bowles - Por inúmeros fatores. A maioria das pessoas, em certas situações, é completamente altruísta. Muitas vezes, elas são generosas inclusive com estranhos e são extraordinariamente corajosas ao servir suas nações ou suas famílias. Como quando ocorrem desastres naturais ou para defender uma causa. Essa evidência de que os seres humanos não são inteiramente egoístas tem sido bastante estudada recentemente. Há diversos experimentos feitos em laboratórios que mostram que indivíduos que recebem dinheiro para dividir com outras pessoas, em geral, são generosos. Na maioria das vezes, eles fazem isso anonimamente, quando não estão sendo vigiados. Nesses experimentos, a maioria das pessoas não age de maneira egoísta, como costumávamos imaginar no passado, à luz da teoria da evolução.

Istoé - Como as pessoas agem? 
Samuel Bowles - Às vezes, são incondicionalmente altruístas, do tipo Madre Tereza de Calcutá. Em outros momentos, só são altruístas enquanto outras pessoas do grupo também agem assim. As pessoas têm compromissos morais. Claro que, em muitas situações, agem por interesse próprio. O egoísmo é uma parte importantíssima do repertório humano e não pode ser ignorado. Mas é fundamental ter em mente que o comportamento humano é muito mais complexo do que a teoria da evolução supõe. 
 
Istoé - Quais sociedades o sr. ­es­­tudou? 
Samuel Bowles - Tive o privilégio de estudar um grande número de sociedades em várias partes do mundo. Junto com um time de economistas e antropólogos, estudei 15 grupos na África, na Ásia e em países da América Latina, como Peru, Equador e Paraguai. Nesse experimento, demos dinheiro para algumas pessoas dividirem com outras. A regra era: se a segunda pessoa aceitasse a quantia que a primeira ofereceu, o jogo terminaria. Mas, se rejeitasse, as duas não ganhariam nada. Supondo que uma pessoa egoísta, que recebeu US$ 10, ofereça apenas US$ 0,50, se a segunda pessoa também é egoísta, ela vai aceitar achando que é melhor ganhar 50 centavos do que sair com os bolsos vazios. Mas isso não ocorre com frequência. Ofertas pequenas, quase sempre, são rejeitadas. E as pessoas rejeitam por raiva, para punir o egoísta. Alguém pode pensar: ‘Eram só US$ 10’. Em experimentos com grandes quantidades de dinheiro os resultados têm sido os mesmos. Por generosidade ou por medo da rejeição, quase todas as ofertas ficam próximas de 50%. Estudos como esse foram feitos em pelo menos 35 universidades e 40 países. 

Istoé -
Os resultados o surpreenderam? 
Samuel Bowles - Não, pois tenho estudado o comportamento humano durante toda a minha vida. Se assistirmos à tevê, vemos que há muita gente fazendo coisas incríveis e perigosas para defender uma causa. As manifestações nas ruas do Cairo, no Egito, são um claro exemplo. Talvez, muitos economistas se surpreendam porque acreditam que o ‘homem econômico’ é egoísta. Muitos biólogos também, porque acreditam que a seleção natural só é capaz de produzir animais egoístas. Essa interpretação equivocada da teoria de Darwin é mostrada num livro que será lançado em breve, do qual sou coautor, chamado “Uma Espécie Cooperativa: Reciprocidade Humana e sua Evolução”. 

Istoé -
A espécie humana é essencialmente cooperativa? 
Samuel Bowles - Exatamente. A questão central não é por que pessoas egoístas agem de maneira generosa, mas como a genética e a evolução cultural produziram uma espécie em que um número substancial de pessoas se sacrifica para manter as normas éticas e para ajudar, inclusive, pessoas estranhas. A seleção natural e a transmissão genética de pais para filhos podem, sim, produzir espécies cooperativas. Os primeiros seres humanos – de 50 mil anos atrás, dez mil anos atrás e assim por diante – viveram em condições adversas, de variações climáticas e desafios diante de outros grupos, em que indivíduos egoístas teriam sido bastante prejudiciais na competição pela sobrevivência. Os grupos mais cooperativos foram mais capazes de se reproduzir em larga escala. Creio que essa foi a razão de a espécie humana ter se tornado cooperativa. 
 
Istoé - Há sociedades mais altruístas e outras menos? 
Samuel Bowles - Há algumas sociedades em que, em tese, todo mundo oferece a metade para a outra pessoa e outras em que oferece 40% ou menos. Mas, surpreendentemente, também há locais em que as pessoas oferecem mais da metade. Nós, estudiosos, ainda não sabemos o suficiente para generalizar o grau de altruísmo no mundo. O que sabemos é que, em geral, menos de um terço das pessoas é egoísta. Ao contrário do que diz o senso comum, as sociedades mais avançadas economicamente – como os Estados Unidos e países europeus – não são mais nem menos egoístas do que países africanos, asiáticos ou latino-americanos. 
 
Istoé - A teoria da sobrevivência do mais apto e a da sobrevivência do mais gentil é mais ou menos presente, dependendo da sociedade estudada? 
Samuel Bowles - Não há uma única sociedade que eu estudei e onde experimentos tenham sido feitos que tenham confirmado a hipótese do “homem econômico egoísta”. Posso dizer, com certeza absoluta, que não há uma única sociedade já descoberta na qual os pressupostos dos economistas ou os da seleção natural – de que a espécie humana é inteiramente egoísta – tenham sido confirmados. O que temos são vários graus e diferentes tipos de altruísmo coexistindo com o autointeresse. 
 
Istoé - O altruísmo pode ser aprendido? 
Samuel Bowles - Certamente. Acreditava-se, no passado, que o comportamento altruísta ficava restrito a membros de uma mesma tribo ou vila ou limitado a grupos linguísticos. Mas, agora, sabemos que o altruísmo pode se estender pelo mundo todo. Muitos de nossos valores são influenciados pela nossa constituição genética. Mas também somos seres culturais, aprendemos através de exemplos – com as lições de nossos pais, professores, vizinhos, líderes nacionais e internacionais. Tenho 71 anos. Na minha juventude, era impossível imaginar que um afro-americano seria eleito presidente dos Estados Unidos, já que alguns tipos de espírito cívico não existiam nos anos 1950 e 1960. 

Istoé -
De acordo com a sua teoria, como o comportamento altruísta influenciou a evolução cultural e genética dos humanos? 
Samuel Bowles - A pessoa é altruísta, de acordo com biólogos e também segundo a minha definição, se ajuda os outros sacrificando a si mesma. Para os biólogos, isso significa ajudar as outras pessoas a se adaptar, produzir mais crianças e cuidar delas até que elas próprias possam se reproduzir. Para os biólogos, no entanto, esse tipo de sacrifício só seria possível entre irmãos ou parentes próximos. Porque, se a pessoa abrir mão do próprio sucesso reprodutivo para ajudar um desconhecido, seu tipo altruísta é eliminado. O problema é que essa teoria desconsidera uma questão importantíssima: seres humanos vivem em grupos e nós sobrevivemos por causa disso. Se estivéssemos num grupo em que todos são egoístas, ele funcionaria precariamente e acabaria extinto. 

Istoé -
Países e empresas poderiam ser mais bem administrados à luz dessa teoria? 
Samuel Bowles - Claro. Filósofos e advogados fizeram e ainda fazem leis baseadas no pressuposto de que as pessoas são completamente egoístas. Isso é um erro. Acredito que esse equívoco nos remeta ao filósofo Nicolau Maquiavel (1469-1527). Em um de seus escritos, Maquiavel afirmou que todo mundo é perverso, que a raiva torna as pessoas engenhosas e que a lei as tornaria boas. Pesquisas mostram que tratar as pessoas como egoístas pode ser um incentivo para que elas ajam de maneira egoísta. 

Istoé - Como assim? 
Samuel Bowles - Essa tese foi comprovada em muitas ocasiões. Uma delas em Israel. Em várias creches de lá, foi imposta uma multa para os pais que chegassem mais de dez minutos atrasados para buscar seus filhos. A proporção de atrasados dobrou a partir do anúncio da multa. Nas creches onde não havia essa regra, no entanto, a proporção permaneceu inalterada. Quando não havia multa, os pais sentiam estar violando uma norma ética e atrapalhando o andamento da escola e a rotina dos professores. Depois, chegar atrasado virou uma mercadoria que os pais poderiam comprar. 

Istoé -
O mundo está se tornando mais altruísta ou mais egoísta? 
Samuel Bowles - Está se tornando mais altruísta ou, pelo menos, de espírito mais público. Parte disso ocorre porque nos tornamos mais universais e menos nacionalistas. Se nós considerarmos 50 anos atrás, a maioria de nossas conexões era com nossas famílias e pouquíssimas pessoas de fora.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Família neandertal canibalizada é encontrada em caverna na Espanha

BBC
22/12/2010 09h10 - Atualizado em 22/12/2010 10h02

Família neandertal canibalizada é encontrada em caverna na Espanha

Segundo pesquisadores, ossos encontrados em caverna indicam que indivíduos foram mortos e comidos por outros neandertais.

Arqueólogos descobriram os restos de uma possível família de 12 neandertais que foram mortos há 49 mil anos numa caverna da região de Astúrias, no norte da Espanha.
Segundo os pesquisadores, marcas nos ossos mostram sinais de atividade canibal, indicando que os indivíduos encontrados foram comidos por outros neandertais.
Detalhes da descoberta foram publicados na última edição da revista especializada Proceedings of the National Academy of Sciences.
Apesar de os fragmentos de ossos de seis adultos e seis crianças terem sido encontrados dentro da caverna, os arqueólogos acreditam que eles viviam e foram mortos na superfície, mas que teriam sido envolvidos pela caverna após um desabamento.
Fragmentos de ossos foram encontrados em caverna das AstúriasFragmentos de ossos foram encontrados em caverna das Astúrias (Foto: Divulgação )
'Todos eles mostram sinais de canibalismo. Eles têm marcas de cortes em vários ossos, incluindo os crânios e as mandíbulas', disse o arqueólogo Carles Lalueza-Fox, do Instituto de Biologia Evolucionária de Barcelona, que coordenou o estudo.
'Os ossos longos foram fragmentados para tirar o tutano, então todos os sinais de canibalismo que foram descritos em outros locais de neandertais estão presentes nesses indivíduos', afirmou.
Família
A conclusão de que o grupo era uma família vem da análise do DNA mitocondrial, o material genético encontrado nas células animais passado pela linhagem feminina.
Os dados genéticos sugerem que enquanto os três adultos do sexo masculino no grupo tinham a mesma linhagem materna, as três mulheres do grupo tinham origens maternas diferentes.
Segundo os pesquisadores, isso mostraria que pelo menos nesta família de neandertais, as mulheres vieram de fora do grupo, enquanto que os homens permaneceram no grupo familiar ao chegar à idade adulta.
Esse modelo do que é chamado 'patrilocalidade' é comumente visto em algumas culturas modernas, observa Lalueza-Fox, com os homens permanecendo na casa da família após o casamento com uma mulher de outro grupo.

domingo, 29 de agosto de 2010

Edward O. Wilson

Salvem o planeta, O biólogo americano diz que a situação é tão grave que ciência e religião deveriam se unir na defesa da biodiversidade

Diogo Schelp

Kris Snibble/Haward News Office
"Religiosos e cientistas deveriam deixar de lado as diferenças. Para ambos, a natureza é sagrada, pois dela depende a criação humana"

Autor de um celebrado estudo sobre a fartura de seres vivos no planeta, chamado Diversidade da Vida, o biólogo americano Edward Wilson foi um dos pioneiros a alertar sobre a extinção em massa de espécies causada pela atividade humana no século XX. Em sua mais recente empreitada – cujo resultado está no livro A Criação, a ser publicado em setembro nos Estados Unidos –, ele analisou as relações entre religião e ciência e propôs uma solução para o confronto ideológico nesse campo. "Religiosos e cientistas deveriam ter um objetivo comum: defender a natureza, porque dela depende a criação humana", diz Wilson. Fundador da sociobiologia, ciência que estuda as bases genéticas do comportamento social dos animais, inclusive o ser humano, ele ganhou duas vezes o Prêmio Pulitzer – por Formigas, inseto do qual é o maior especialista mundial, e Sobre a Natureza Humana, em que estuda o modo como a evolução se reflete na agressividade, na sexualidade e na ética humana. Aos 76 anos, aposentado mas em plena atividade como professor e escritor, Wilson concedeu a seguinte entrevista de seu escritório na Universidade Harvard, nos Estados Unidos.  

V. – Mais de 80% da população dos Estados Unidos não acredita na teoria da evolução. Trata-se de um fenômeno tipicamente americano?
 

Wilson – Para 51% dos americanos, a espécie humana foi criada por uma força superior alguns milhares de anos atrás. Outros 34% acreditam que houve uma evolução guiada por Deus. Os 15% restantes dizem que os cientistas estão corretos. Esses números são extraordinários porque representam exatamente o oposto do que pensam os europeus. Na Europa, 40% da população dá razão à tese de que as espécies evoluíram pela seleção natural. Apenas uma minoria concorda com os criacionistas, que descartam a teoria da evolução.  

V. – O que explica o vigor do criacionismo, a ponto de estar em cogitação ensiná-lo nas escolas americanas, em oposição à teoria da evolução das espécies?

Wilson –
Algumas organizações religiosas estão conseguindo introduzir no governo americano a tese do design inteligente. Isto é, que foi Deus quem guiou a evolução. Ajuda o fato de termos um presidente, George W. Bush, que acredita que Deus fala com ele quando toma certas decisões ou vai à guerra. Isso fortalece as crenças fundamentalistas mais radicais da população. Para completar, após os atentados de 11 de setembro, a população americana, sentindo-se vulnerável, agarrou-se à idéia de que o país precisa se voltar mais para a religião. Em meu próximo livro, A Criação, faço um apelo às pessoas religiosas. Peço que deixem de lado suas diferenças com as pessoas seculares e os cientistas materialistas, como eu, e se juntem a nós para salvar o planeta. A ciência e a religião são as duas forças mais poderosas do mundo. Para ambas, a natureza é sagrada.  

V. – O senhor sustenta existir uma relação direta entre a seleção natural e o sentimento religioso. Qual é?
Wilson – A religião está sempre dizendo às pessoas que sobrevivam, e esse é um princípio básico da seleção natural. A religião estimula a mente humana a transpor as dificuldades, a juntar-se a outros indivíduos e a se comportar de maneira altruísta em favor do grupo. O objetivo é a sobrevivência do grupo. Isso explica por que as religiões são tão tribalistas.  

V. – Qual é o erro da teoria do design inteligente, a idéia de que a complexidade dos organismos vivos é a melhor prova da existência de um projetista divino?

Wilson –
O único argumento dos defensores do design inteligente é que a ciência não consegue explicar todos os detalhes da evolução e dos fenômenos naturais. Para eles, isso é o suficiente para justificar a crença numa força sobrenatural por trás do inexplicável. Obviamente, não se trata de um argumento científico. A motivação dos cientistas é justamente a de descobrir a verdade sobre o que ainda não se consegue explicar. Ao adotar a crença de que a evolução é uma invenção de Deus, a religião coloca em risco sua credibilidade e prestígio. Se os defensores do design inteligente tivessem evidências da existência de forças sobrenaturais nos processos físicos e biológicos, os cientistas seriam os primeiros a estudar esses fenômenos.  

V. – É possível aceitar a teoria da evolução e, ao mesmo tempo, ser religioso?

Wilson –
Sim, claro. Eu próprio me considero um espiritualista. Acredito na grande força do espírito humano. Mas não creio em vida após a morte ou em uma alma separada do corpo e da mente. A criatividade, a estética, o sentimento de totalidade e o amor são essencialmente parte do funcionamento da mente. Sabemos que o cérebro se comporta de maneira diferente quando ocorrem mudanças químicas no organismo ou quando nos machucamos. Isso sugere que a essência humana depende de um sistema celular complexo. Não há incoerência alguma em acreditar que os sentimentos têm uma base física e, ao mesmo tempo, ter uma visão espiritual da mente humana.  

V. – O senhor não se sentiria reconfortado se soubesse que existe vida após a morte?

Wilson –
Pense no que significaria passar o resto da eternidade no céu. Não fomos feitos para isso. A mente humana foi construída para durar por um tempo limitado. Ultrapassar esse limite seria obrigar o indivíduo a uma existência infernal. Uma pesquisa com a elite científica dos Estados Unidos mostrou que 85% dos pesquisadores não se importam se existe ou não vida após a morte. Eu não me importo.  

V. – O senhor afirmou certa vez que se considera um deísta provisório. O que quer dizer com isso?
Wilson – Primeiro é preciso definir teísmo e deísmo. O teísmo é a crença de que Deus intervém nos assuntos humanos. Deus seria capaz de fazer milagres e está diretamente ligado ao discurso humano. Já o deísta é aquele que aceita a possibilidade de existir uma força superior que estabeleceu as leis responsáveis pela criação do universo. O deísta, no entanto, não acredita que Deus esteja envolvido nos assuntos diários dos seres humanos. Enquanto não soubermos dar uma melhor explicação para o início do universo, considero-me um deísta provisório. A ciência está avançando rapidamente. Quem sabe em breve os físicos já possam explicar de onde viemos.  

V. – Muitos críticos dizem que a ciência é uma espécie de religião e que a teoria da evolução exige devoção. O senhor concorda?

Wilson –
Não. Existe uma grande diferença. A religião exige fé, uma fé sem questionamentos. A ciência não tem nada parecido com isso. Baseia-se em um conjunto de conhecimentos acumulados e tem uma trajetória de agregar mais e mais informações que explicam o mundo. É um processo de busca, de exploração e descoberta. Totalmente diferente de religião.  

V. – O senhor vê progresso na evolução?

Wilson –
Sim, porque em bilhões de anos a evolução tem produzido espécies cada vez mais complexas, um maior número de organismos e ecossistemas mais sofisticados. Se tomarmos exemplos isolados, no entanto, veremos que nem sempre a evolução significa progresso. Afinal, ela é fruto de mutações e mudanças genéticas aleatórias. Há casos de parasitas que perderam os olhos e de animais que perderam os pés. Se complexidade é progresso, então essas espécies regrediram.

V. – O fato de o ser humano ter evoluído a ponto de controlar a natureza como nenhum outro animal nos dá o direito de fazer o que quisermos com as outras espécies?

Wilson –
A espécie humana sem dúvida é a mais sagrada do planeta. Afinal, é a mais inteligente e a única civilizada. Nos estágios iniciais da nossa evolução, quando os seres humanos viviam da caça e em bandos, o objetivo era derrotar a natureza, porque isso era uma questão de sobrevivência. Hoje, derrotar a natureza significa destruir parte do que resta de vida na Terra. Temos de saber quando parar. Estamos arruinando a natureza só para abrir um pouco de espaço para mais seres humanos. Isso não é progresso, nem sob o aspecto moral, nem como opção para garantir o futuro da humanidade. Nós precisamos da natureza para garantir a produtividade na biosfera. A espécie humana foi bem-sucedida demais.  

V. – Um estudo da ONU estimou que em 2050 a população da Terra atingirá o pico de 9 bilhões de pessoas, para então estabilizar. Como podemos melhorar a situação econômica de tanta gente e, ao mesmo tempo, impedir a destruição da natureza?
Wilson – A maioria dos especialistas acredita que os recursos existentes na Terra suportariam essa superpopulação sem destruir a natureza. É preciso aumentar a produtividade da terra, e, para isso, temos de utilizar sementes geneticamente modificadas. A espécie humana depende de apenas vinte tipos de planta para se alimentar. Arroz, milho e trigo são as principais. Existem, no entanto, mais de 50.000 plantas cultiváveis. Muitas delas podem se tornar viáveis economicamente com a modificação genética. Se soubermos preservar o que restou da natureza e torná-la mais produtiva, conseguiremos alimentar os 9 bilhões de pessoas previstos para 2050.  

V. – Por que existe resistência tão grande aos alimentos geneticamente modificados?

Wilson –
O primeiro medo é o de que existam riscos ambientais no uso de transgênicos. Há quem tema, por exemplo, que possam dar origem a superbactérias, resistentes a qualquer tipo de remédio. Essa é uma visão hollywoodiana. Não existem evidências de que isso possa ocorrer. Já há as superbactérias, mas elas são naturais. Em geral são espécies de outros países ou continentes trazidas sem querer em navios ou aviões. Em ambientes sem a competição de outras espécies, essas bactérias se espalham e acabam se tornando pestes sérias. O segundo temor é o de que os alimentos transgênicos possam ser prejudiciais à saúde humana. Até agora também não há evidências disso, apesar dos inúmeros estudos. Nos Estados Unidos, 40% dos alimentos consumidos pela população são geneticamente modificados. Há quem diga que isso não é natural. Bobagem. Na prática, temos feito isso há 10.000 anos. Desde que a agricultura foi inventada, criamos plantas e animais modificando sua genética e escolhendo as melhores espécies. Isso não é diferente de introduzir novos genes diretamente em uma espécie. Não é o gene que interessa, e sim se o produto criado com ele é bom.

V. – Por que é tão urgente preservar a biodiversidade do planeta?

Wilson –
Um cálculo feito em 1997 por biólogos e economistas mostrou que as espécies de todos os ecossistemas contribuíram com 30 trilhões de dólares em "serviços", como limpeza e retenção de água, regeneração de solo e limpeza da atmosfera. Esse valor era, naquele momento, próximo ao de toda a produção humana. Dependemos da biodiversidade mais do que imaginamos. Outro aspecto é que estamos começando a compreender como as espécies que surgiram 1 milhão de anos atrás foram extintas e substituídas por outras. Isso é importante para entendermos a origem da vida. Precisamos desse conhecimento. Os cientistas identificaram apenas 10% das espécies e organismos existentes no planeta. Conhecer os 90% restantes tem um valor inestimável.  

V. – Alguns cientistas dizem que a espécie humana está vivendo uma evolução acelerada. A tese é a de que a humanidade está começando a decidir sobre sua própria evolução. O senhor concorda?

Wilson –
Sim, em meu livro dei a esse fenômeno o nome de evolução voluntária. Estamos próximos de atingir um estágio de desenvolvimento em que poderemos escolher o caminho da nossa evolução. Em breve poderemos eliminar totalmente doenças genéticas, como fibroses, simplesmente substituindo os genes defeituosos. Essa é uma forma de conduzir a evolução. A questão é se deveria ser permitido usar a engenharia genética para melhorar indivíduos humanos. Em alguns anos, os pais poderão escolher se o filho será um bom atleta ou um bom músico. Devemos permitir isso? Trata-se de uma questão ética que ainda não foi analisada em profundidade. Simplesmente porque ainda não estamos enfrentando os problemas relacionados a essas possibilidades tecnológicas. Em algum momento, a humanidade deverá decidir sobre isso, e aí teremos a evolução voluntária. Precisaremos ser muito cuidadosos ao mudar a natureza, pois é ela que nos faz humanos.

V. – Qual o limite?

Wilson –
Não sei, está fora do meu alcance. Precisamos de mais conhecimentos sobre genética, saber melhor o que somos, qual é a natureza humana e quais as conseqüências dessas mudanças na organização da nossa sociedade atual. É uma grande pergunta. Nós mal conseguimos entender a nós mesmos nas condições atuais. Tentar entender como seríamos se nos alterássemos geneticamente é um passo gigantesco.  

V. – Em sua opinião, é eticamente aceitável tentar encontrar uma explicação genética para o comportamento homossexual?

Wilson –
Sim. Quanto mais soubermos, quanto mais verdades tivermos, mais teremos capacidade de resolver questões que mobilizam a sociedade. Já existem algumas evidências de que a homossexualidade acontece por um componente genético hereditário. Parte da variação da preferência sexual deve-se aos genes. Se soubermos o que está envolvido nisso, poderemos tomar decisões racionais e morais sobre o assunto. Se a ciência provar que a homossexualidade tem uma base genética e que o gene está bem distribuído pela população, os gays vão poder dizer: "A evolução natural nos fez assim, e, por isso, não há nada de errado no que fazemos e no tipo de vida que levamos". Esse é um ótimo argumento. Por outro lado, se descobrirmos que a homossexualidade não tem nenhuma origem genética, ganhará força a tese de que esse comportamento sexual tem como causa um trauma ocorrido na infância. Os defensores dessa tese terão argumentos para querer curar ou corrigir os homossexuais. Até descobrirmos a verdade sobre isso, essa discussão vai continuar indefinidamente. Por isso, quanto mais soubermos, mais livres seremos.

domingo, 2 de maio de 2010

Comida cozida ajudou a forjar evolução da humanidade

RICHARD WRANGHAM 



Pesquisador propõe que ancestrais do homem já modificavam alimento com o fogo há cerca de 2 milhões de anos

SE HÁ algo que torna os seres humanos criaturas únicas, diz o primatologista Richard Wrangham, da Universidade Harvard, é o ato de cozinhar. Modificar o alimento com a ajuda do fogo é uma tradição mais antiga que o próprio Homo sapiens, tendo moldado a fisiologia e o comportamento humanos, afirma ele. O sistema digestivo aproveita muito mais a energia dos alimentos cozidos, e a primeira divisão de trabalho se deu entre quem caçava e quem preparava a comida.

Tim Laman/Bloomberg

O primatologista britânico Richard Wrangham, de Harvard, autor do novo livro "Pegando Fogo"

RICARDO MIOTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Essa é a tese de seu novo livro, "Pegando Fogo: Por que cozinhar nos tornou humanos", recém-lançado no Brasil pela editora Jorge Zahar. Embora faltem dados arqueológicos, Wrangham aposta que o hábito de cozinhar remonta a quase 2 milhões de anos atrás, era em que o Homo erectus, possível ancestral do homem, surgia na África. Confira a entrevista abaixo.



 
FOLHA - Ir a campo observar chimpanzés está saindo de moda? Ainda há o que pesquisar assim?
RICHARD WRANGHAM
 - Na verdade, mais e mais pesquisadores estão trabalhando com os chimpanzés na floresta. Além dos sítios clássicos de pesquisa (como Gombe e Mahale, na Tanzânia, Taï, na Costa do Marfim, e Kibale, em Uganda), eles estão sendo os pioneiros em novos lugares (como Fongoli, no Senegal, e Goualougo, no Congo). Fazem isso porque sabem que os chimpanzés têm muito a nos contar, mas que o tempo é curto: a cada década, mais populações e habitats desaparecem. Aparentemente existem importantes diferenças no comportamento dos animais, mas nós ainda não temos certeza sobre por que ocorrem. E nós ainda sabemos pouco sobre uma grande questão: por que chimpanzés e bonobos [espécie "hippie" que é prima do chimpanzé comum, mas é muito dócil] se comportam de maneira tão diferente -uma questão que poderia ajudar a entender por que humanos têm uma mistura ímpar de tendências pacíficas e violentas.


FOLHA - Há 13 anos, o sr. escreveu "O Macho Demoníaco", que causou polêmica ao mostrar o comportamento altamente violento dos chimpanzés, com estupros e massacres, e traçar um paralelo com humanos. Em 2010, a ideia do "bom selvagem" ainda está forte?
WRANGHAM
 - Sem dúvida esse debate vai existir por muito tempo. Mas minha impressão é que, em geral, as pessoas estão ficando mais atentas à importância da biologia na psicologia humana, incluindo a nossa tendência à violência -e as nossas interações pacíficas. Está, também, ficando mais claro que entender os chimpanzés é importante. Os filmes ajudaram a mostrar às pessoas o que acontece na floresta, então todos agora podem ter a experiência que uns poucos privilegiados como eu conseguiam ter décadas atrás.


FOLHA - A presença de pesquisadores como o sr. entre os animais não altera o comportamento deles?
WRANGHAM
 - Ao contrário de pessoas trabalhando em santuários ou em zoológicos, como um observador de campo eu não interajo com os chimpanzés: meu objetivo é ser uma sombra, sempre presente mas ignorado, nunca em contato físico ou social com eles.


FOLHA - Mas existe uma relação emocional com os bichos?
WRANGHAM
 - Eu certamente sinto falta de ficar com os chimpanzés. Fico fascinado com os indivíduos e emocionalmente envolvido com a novela das suas vidas, mas a relação que tenho com os meus objetos de estudo é diferente da relação com o meu cachorro.


FOLHA - Sobre o seu novo livro, "Pegando Fogo": o sr. diz que foram os ancestrais do homem que dominaram o fogo, e não o Homo sapiens. Mas não há evidência arqueológica de que isso tenha acontecido. Como o sr. lida com isso?
WRANGHAM
 - A questão é o quanto a "ausência de evidência" significa "evidência de ausência". Espero que mais cientistas procurem evidências de fogo há 1,8 milhão de anos [quando surgiu o Homo erectus], e que eles as encontrem! Mas os arqueólogos que acreditam que o fogo só foi controlado depois não explicam três questões: sem fogo, por que os humanos têm dentes pequenos, sistema digestivo curto e dormem no chão [com o fogo, nesse caso, tendo uma função de proteção]?


FOLHA - O quanto o sr. acha que seus livros são especulativos?
WRANGHAM
 - Tanto "O Macho Demoníaco" quanto "Pegando Fogo" apresentam ideias que são novas e, certamente, têm componentes especulativos. Mas acho que sou suficientemente claro ao dizer quais partes são bem documentadas e quais exigem mais evidências.


FOLHA - Por que Darwin ignorou que o fogo talvez fosse uma força importante na evolução humana?
WRANGHAM
 - Darwin escreveu que "a descoberta do fogo, provavelmente a maior já feita pelo homem depois da linguagem, aconteceu antes do início da história". Então ele achava que o fogo era importante. Também percebeu a importância de cozinhar. "[Com o fogo] raízes duras e fibrosas podem se tornar digeríveis, e alimentos venenosos, inócuos." Mas Darwin deu pouca atenção ao aspecto evolutivo relacionado ao fogo porque assumiu que a espécie que aprendeu a controlar o fogo já era a humana. Talvez Darwin fosse pensar mais profundamente sobre o papel do fogo se soubesse que os humanos evoluíram dos australopitecos. Mas, nos tempos de Darwin, não se sabia nada sobre as origens humanas, além da sua própria sugestão de que os humanos vinham de algum tipo de primata africano.


FOLHA - O sr. também cita Lévi-Strauss como alguém que não reparou na importância de cozinhar para a história evolutiva humana.
WRANGHAM
 - Lévi-Strauss prestou atenção no ato de cozinhar, mas não no seu significado biológico. Simplesmente nunca considerou a possibilidade de que cozinhar fazia alguma diferença. Mas dificilmente ele pode ser culpado por isso. Mesmo os nutricionistas raramente dizem que nós precisamos de comida cozida por uma questão biológica.


FOLHA - O seu livro pode ser interpretado como uma crítica a quem adota uma dieta de comida crua?
WRANGHAM
 - É um hábito que não é natural nos seres humanos, mas pode ser uma boa dieta para perder peso.


FOLHA - O senhor gosta de comida japonesa? WRANGHAM - A minha favorita é a mediterrânea.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Macaco africano "hippie" nunca vira adulto, diz bióloga

 São famosas as fotos de bonobos, uma espécie de macaco de índole pacífica, fazendo sexo em várias posições --coisa que eles praticam mesmo sem fins reprodutivos, apenas para criar laços afetivos. Um novo estudo tenta explicar por que esses animais altamente sociáveis, apelidados de "macacos hippies", são tão dóceis, ao contrário dos seus primos, os chimpanzés, mais agressivos. A ideia é que, de certo modo, os bonobos nunca se tornam adultos.
Ryan E. Poplin/CC
Filhote de bonobo, macaco africano dócil e "hippie", que "nunca se torna adulto", segundo pesquisa; seu primo chimpanzé é o oposto
Filhote de bonobo, macaco africano dócil e "hippie", que "nunca se torna adulto", segundo pesquisa; seu primo chimpanzé é o oposto

Quem propõe a hipótese é Victoria Wobber, especialista em comportamento animal da Universidade Harvard, dos EUA. A infância dos primatas tem, em geral, como característica o gosto por brincadeiras e diversão. Conforme crescem, animais como o chimpanzé se tornam menos sociais, mais individualistas, mesquinhos e agressivos. Wobber levantou a hipótese de que talvez bonobos nunca chegassem a essa fase. Em um dos experimentos, juntou então 30 chimpanzés e 24 bonobos que vivem em reservas na África. Fez pares de animais da mesma espécie e deu pedaços de banana para um deles. Bonobos costumavam compartilhar a comida recebida, independemente da idade. Chimpanzés jovens dividiam a banana, mas adultos ignoravam essa possibilidade. Evoluções Em estudo na revista "Current Biology", Wobber explica que não é porque os chimpanzés são menos amigáveis que eles são "menos evoluídos" que os bonobos. E, do mesmo jeito, os bonobos não são inferiores aos chimpanzés porque eles retém características da infância. Trata-se de maneiras diferentes de se adaptar a situações diferentes. As espécies se separaram há cerca de 2 milhões de anos, passando a ocupar áreas distintas. Ancestrais dos bonobos ficaram fora de regiões exploradas por gorilas, onde acabava sobrando mais comida. Nesse cenário, "reter os traços juvenis foi largamente vantajoso, pois era algo associado à redução da agressão nos grupos de bonobos", explica Wobber. Os chimpanzés, enquanto isso, precisaram se manter agressivos e egoístas, pois num ambiente menos abastado isso lhes garantia mais alimento.

Por uma menor agressividade, os bonobos "optaram" por prolongar características da infância. Com isso, outros comportamentos típicos dessa fase podem ter vindo junto, ainda que não fossem uma adaptação ao ambiente, diz Wobber.


Para os cientistas, como chimpanzés e bonobos são "primos" próximos da espécie humana, as descobertas podem ajudar a entender as origens do comportamento das pessoas.

Bonobos são especialmente parecidos com humanos: pessoas também sãosociáveis e gostam de sexo em várias posições. Mas existem diferenças. Pessoas também podem ser muito agressivas e mesquinhas.

Por isso, como a psicologia humana tem suas particularidades, paralelos entre a evolução de comportamentos em bonobos e em humanos ainda não podem ser muito bem estabelecidos no que se refere ao prolongamento da infância. Mas isso não intimida os biólogos.

"O próximo passo que vamos dar é fazer comparações diretas com humanos", diz Wobber.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Genoma e impacto do ambiente abrem novos rumos para teoria da evolução


Publicação de 'A Origem das Espécies' completa 150 anos

 


Foto: RIA Novosti/AFP

Talvez a mudança mais conceitual proposta pelas novas pesquisas seja sobre o papel do ambiente no processo evolutivo. Em vez de atuar como mero filtro sobre as características, como proposto por Charles Darwin, o ambiente teria o poder de causá-las (Foto: RIA Novosti/AFP)


Neste novembro as comemorações do bicentenário de nascimento de Charles Darwin (1809-1882) atingem seu ponto máximo. Foi neste mês, há 150 anos, que ocorreu a publicação da primeira edição de "A Origem das Espécies", o livro que inscreveu o naturalista no hall dos grandes gênios da ciência.

Embora ninguém questione a grandiosidade do feito intelectual de Darwin – afinal, conceitos como adaptação, evolução e seleção são alguns dos fundamentos da biologia moderna –, são cada vez mais expressivas as vozes que defendem que "A Origem..." não é a última palavra na tentativa de explicar os mecanismos pelos quais a vida se reinventa e se diversifica. Observações feitas em novas áreas de investigação, como a genômica e a epigenética, não encontram paralelo no pensamento de Darwin. E há quem proponha que talvez seja necessária uma nova revolução conceitual na biologia.

  • Aspas Antes da genômica, havia poucas formas de pesquisar a evolução experimentalmente. Ficava-se restrito ao estudo de fósseis, a experimentos de reprodução dirigida e a pouca coisa mais"
Na verdade, o que se ensina hoje sobre evolução já é uma versão expandida e melhorada do pensamento do naturalista inglês. Darwin não conhecia, por exemplo, o trabalho do monge austríaco Gregor Mendel (1822-1884), apesar de eles terem sido contemporâneos.

Foi somente no início do século 20 que biólogos do Ocidente tiveram contato com os estudos de Mendel sobre hereditariedade, o que levou ao conceito de gene e ao surgimento da genética. A fusão das ideias propostas pelos dois pensadores começou a ser elaborada na década de 1930 e recebeu o nome de Síntese Evolutiva ou neodarwinista. Em suas elaborações, os biólogos neodarwinistas reservaram para o gene um lugar central.

Mutações na sua estrutura levariam ao aparecimento da grande diversidade de características dos seres vivos, sobre as quais atua a seleção natural. A maior ou menor vantagem adaptativa conferida ao organismo por uma mutação resultaria na variação da frequência da mutação em uma população. Traços como o comportamento social e cooperativo em insetos, animais e até em humanos seriam apenas esforços dos organismos para assegurar a transmissão de suas fitinhas de DNA, mantendo elevadas as frequências daqueles genes.

Essa visão, que muitos taxaram de “genecêntrica”, foi radicalizada pelo inglês Richard Dawkins, que afirmou nos anos 1970 que a preservação das sequências de bases nitrogenadas “é a razão última de nossa existência”, e que todos os organismos são só grandes “máquinas de sobrevivência” do próprio material genético.

Papel dos genes
Provêm justamente do estudo dos genes – mais especialmente da genômica, a disciplina que estuda os mecanismos do genoma (o conjunto de genes) – as novidades que estão pondo em xeque algumas das ideias mais tradicionais sobre evolução. “Antes da genômica, havia poucas formas de pesquisar a evolução experimentalmente”, lembra Ney Lemke, professor do Instituto de Biociências da Unesp de Botucatu e pesquisador na área de redes biológicas. “Ficava-se restrito ao estudo de fósseis, a experimentos de reprodução dirigida e a pouca coisa mais.”

Hoje há várias formas de observar em tempo real o processo de variação e seleção que leva ao surgimento de novas variedades de organismos, como exemplifica o pesquisador. “Alguns experimentos cultivam colônias de bactérias tipo Escherichia coli [comumente encontrada no intestino humano] em laboratório por décadas, monitorando o aparecimento das mutações no genoma e as consequências que elas acarretam para as sucessivas gerações. Isso permite acompanhar a evolução passo a passo e testar modelos para refutá-los ou confirmá-los. A pesquisa sobre evolução passa de um debate qualitativo e abstrato para o âmbito da avaliação quantitativa.”

A pesquisa genômica abriu os olhos dos pesquisadores para uma série de fenômenos de cuja existência nem Darwin nem seus seguidores suspeitavam. São mecanismos como a transmissão horizontal de genes (THG), que consiste na troca de sequências de bases e de pedaços inteiros de genoma entre seres tão diferentes como vírus, bactérias, plantas e animais, incluindo o homem. Ou a metilação de DNA, que permite que indivíduos portadores das mesmas características genéticas apresentem aspectos bem diferentes.

Alguns geneticistas estão repensando até a própria definição de gene
Também surpreendem as grandes diferenças de arranjos na estrutura do genoma que podem ser observadas em espécies que, evolutivamente falando, são muito próximas. E, como se não bastasse todo esse movimento, alguns geneticistas estão repensando até a própria definição de gene.

Quando o Projeto Genoma Humano foi iniciado, em 1990, acreditava-se que ele traria a chave para a compreensão do Homo sapiens. “Na época havia a crença de que a maior parte dos genes se destinava a codificar proteínas. Por isso, uma vez descoberto esse código, esperava-se que seria possível prever o desenvolvimento do indivíduo”, explica Gustavo Maia Souza, professor-colaborador da Unesp de Rio Claro.

Ao longo dos anos 1990 foram anunciadas descobertas de genes supostamente responsáveis por originar as mais diversas características, do alcoolismo à homossexualidade. O projeto chegou ao fim em 2003, e até 2008 resultados mais acurados continuavam sendo divulgados.

Mas, ao longo desses anos, uma reviravolta aconteceu. Em vez dos cerca de 100 mil genes estimados, os biólogos encontraram menos de 30 mil. Descobriu-se que mais da metade não codificava nenhuma proteína, sendo por isso batizada de “DNA lixo”. E mesmo a parte “funcional” do genoma se comportava de modo estranho, com alguns genes se mostrando capazes de codificar mais de uma proteína.

Hoje sabemos que até a posição do gene pode influenciar sua capacidade de dar origem a uma proteína. E que o tal do DNA lixo tem o poder de regular os mecanismos de síntese proteica, estabelecendo os momentos e circunstâncias em que ela vai ocorrer.

“Hoje os geneticistas falam na ação combinada de dezenas ou centenas de genes que interagem simultaneamente para afetar a expressão de uma única característica”, escreve a bióloga israelense Eva Jablonka em seu livro "Evolution in four Dimensions". “Ficou para trás a época em que o genoma era visto como uma biblioteca de genes individuais – unidades autônomas que produzem sempre o mesmo efeito. E se o genoma é um sistema organizado, em vez de apenas uma coleção de genes, então o processo que gera variação pode ser uma propriedade do próprio sistema, que é regulada e modulada pelo genoma e pela célula”, diz ela.

Árvore redesenhada
Tais descobertas estão sendo lentamente assimiladas ao repertório de noções sobre evolução. Uma das primeiras formulações esboçadas é uma crítica à chamada “árvore da vida” – o clássico gráfico que o inglês esboçou para explicar seu pensamento. Acontece que a colocação das espécies distintas em “galhos” divergentes sugere uma transmissão de genes apenas da espécie ancestral para a sucessora, pressupondo um isolamento entre os organismos que não é compatível com o que sabemos agora a respeito da troca horizontal de genes.

  • Aspas A imagem da árvore ficou comprometida. Mais adequado é imaginar uma figura onde os vários galhos estejam ligados uns aos outros"
“Com certeza, no primeiro bilhão de anos após o surgimento da vida, a transferência horizontal de genes era algo muito frequente entre os seres vivos”, explica Aldo Mellender, geneticista e professor de História das Ideias sobre Evolução Biológica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “E mesmo hoje continua havendo grande troca de material por essa via”, diz. “Fenômenos como o aumento de resistência entre bactérias do tipo E. coli se devem à capacidade que elas têm de trocar genes entre si”, complementa Lemke.

“A transmissão horizontal de genes implica que certas características de um organismo são oriundas de outras espécies que vivam no mesmo ambiente. A ideia da árvore da vida não se sustenta”, diz. Mellender concorda: “A imagem da árvore [original] ficou comprometida. Mais adequado é imaginar uma figura onde os vários galhos estejam ligados uns aos outros.”

Outro conceito visado é o de que as transformações nos organismos são gradativas. Em sete oportunidades, Darwin escreveu que "natura non facit saltum" (a natureza não dá saltos). Os seres vivos passariam por pequenas mudanças. Se elas conferissem alguma vantagem adaptativa, seriam acumuladas ao longo do tempo, e o processo eventualmente levaria ao surgimento de novas espécies.

Essa perspectiva foi questionada ainda no século 19 por ninguém menos do que T. H. Huxley, na época o mais destacado defensor das ideias de Darwin. Mas no século 20 o gradualismo foi abraçado pela síntese neodarwinista.



reprodução/Reprodução

Apesar de proporem algumas mudanças aos preceitos de Darwin e seus seguidores, as críticas não dão suporte aos adversários do evolucionismo, como os adeptos do criacionismo. Pelo contrário, elas reforçam as previsões da seleção natural (Foto: Collection Roger-Viollet/France Presse)


Somente nos anos 1970 o paleontólogo americano Stephen J. Gould (1941-2002) chamaria a atenção para o fato de que há poucos fósseis que retratam a transição entre espécies. Ele procurou formular uma nova teoria, denominada Equilíbrio Pontuado, que sugere que o surgimento de novas espécies ocorre de forma mais rápida. Hoje o argumento fóssil de Gould é complementado pelas evidências genômicas.

A transmissão horizontal faz com que alguns seres vivos subitamente incorporem ao seu genoma genes inteiros de uma espécie diferente. “Também são comuns episódios onde se vê toda a reorganização da estrutura de DNA de um organismo”, diz Lemke. “A evolução embaralha o genoma, reorganiza, faz rearranjos complexos que podem ser comparados a saltos. É um processo muito maior do que só o acúmulo de pequenas mutações”, complementa.

Mellender afirma que mesmo a síntese neodarwinista já falava na possibilidade de eventos rápidos de especiação. E a genômica só tem reforçado a possibilidade. “Um exemplo que vemos de salto é o fenômeno da poliploidia entre os vegetais”, explica. Ele cita o trigo. Os ancestrais da planta tinham 14 cromossomos. Nas gerações seguintes, por problemas de divisão celular e hibridizações, acabaram surgindo indivíduos com 42 cromossomos, configurando uma espécie nova.

Talvez a mudança conceitual mais significativa esteja no papel desempenhado pelo ambiente no processo de evolução. Para Darwin, as condições ambientais atuariam como uma peneira sobre os seres vivos em perpétua transformação, favorecendo algumas características surgidas e descartando outras. Mas os estudos em epigenética têm mostrado que, além de selecionar modificações em organismos, os fatores ambientais têm o poder de causá-las.

Um dos primeiros defensores desta ideia foi o biólogo inglês Conrad Waddington (1905-1975), que cunhou o termo epigenética. Em série de experimentos feitos nos anos 1940, ele expôs larvas de moscas drosófilas a elevadas temperaturas. Como resultado do choque térmico, 40% das moscas, ao se tornarem adultas, demonstravam uma diferença na aparência: não apresentavam mais o característico desenho de veias nas asas. Waddington então fazia com que as moscas com a modificação cruzassem entre si, e submetia a prole ao mesmo tratamento de exposição ao calor. A seguir, repetia o processo de selecionar os espécimes sem sinais de veias e de fazê-los cruzar entre si.

O resultado é que, em cada etapa, crescia o número de indivíduos que, embora possuíssem a configuração genética para tal, não exibiam veias. Em menos de 20 gerações, eles chegaram a constituir 90% da população. Mais impressionante foi constatar que, a partir da 14ª geração, algumas moscas começaram a apresentar a modificação sem nem passarem pela exposição ao calor. Apenas pelo cruzamento, o biólogo obteve uma população com quase 100% dos indivíduos sem marcas nas asas. Em outras palavras, um traço adquirido havia sido assimilado e incorporado pelo mecanismo de hereditariedade, sem que houvesse mutações nos genes. Há ocorrências disso inclusive em humanos.

“Reabilitação” de Lamarck
Essas descobertas de certo modo reabilitam ideias do francês Jean Baptiste de Lamarck (1744-1829), que afirmava que características adquiridas por indivíduos em suas interações com o ambiente podiam ser transmitidas à prole. Ele propunha, por exemplo, que girafas têm pescoço comprido porque seus pais tiveram de se esticar para alcançar alimento nas árvores. Quando Darwin propôs que o ambiente era apenas uma instância de seleção de variações, Lamarck foi posto de escanteio.

  • Aspas Até recentemente a afirmação de que variações adquiridas poderiam ser herdáveis constituía uma heresia grave que não deveria ter lugar na teoria evolutiva"
O pensamento neodarwinista estabeleceu uma profunda separação entre os processos internos que geram o organismo e o mundo exterior. Reunir esses dois elementos é o desafio para os teóricos da evolução do século 21, que poderiam, num gesto surpreendente, adaptar algumas das ideias lamarckistas para a era genômica. “É possível que existam mecanismos lamarckistas que permitam a herança de mudanças genômicas induzidas por fatores ambientais. Mas até recentemente a afirmação de que variações adquiridas poderiam ser herdáveis constituía uma heresia grave que não deveria ter lugar na teoria evolutiva”, escreve Eva Jablonka.

“Para o neodarwinismo, o organismo era um sistema fechado. Tudo o que acontecia nele era decorrência de um código informacional, o genoma”, diz Gustavo Maia Souza. “A epigenética abre o sistema, pois reconhece que os seres vivos, mesmo possuindo uma base genética, dependem também do contexto ambiental. O contexto onde aquele genoma está vai refletir em leituras distintas daquela informação.”

  • Aspas Talvez por fruto da herança de Darwin, tenhamos dado ênfase demais a uma visão do ambiente agindo apenas como um filtro. Não está sendo fácil aceitar que ele possa ter um papel muito mais importante do que se pensava anteriormente"
Souza acredita que as novas descobertas irão fazer crescer na biologia os estudos de sistemas complexos, justamente o tema da disciplina que ele ministra em Rio Claro. “Os estudos em epigenética chegam a ser revolucionários”, avalia Mellender. “Estão trazendo uma evidência tão forte que é difícil negar. Talvez por fruto da herança de Darwin, tenhamos dado ênfase demais a uma visão do ambiente agindo apenas como um filtro. Não está sendo fácil aceitar que ele possa ter um papel muito mais importante do que se pensava anteriormente.”

Para Souza, a mudança que se avizinha deverá ser ainda maior. “O pensamento clássico via os genomas como sistemas fechados, é determinista e reducionista: tal gene gera tal proteína”, diz. “A epigenética mostra que os sistemas biológicos, mesmo tendo uma base genética, são dependentes do contexto ambiental.” Com base nisso, ele defende a adoção de uma descrição dos organismos na qual eles sejam vistos como sistemas auto-organizados, de modo que a variabilidade de características dos seres vivos não se deveria à aleatoriedade, mas a propriedades físico-químicas intrínsecas dos organismos.

Ponto contra o criacionismo
É importante ressaltar que tais propostas de revisão crítica das ideias de Darwin em nada beneficiam adversários do pensamento evolucionista como os adeptos do criacionismo ou do Design Inteligente. Muito pelo contrário. Mellender explica que um dos argumentos do DI é que fenômenos como o movimento dos flagelos em micro-organismos se baseiam em interações moleculares tão complexas que não poderiam ter se formado gradualmente. Já teriam surgido “prontos”. Dá-se a este argumento o nome de complexidade irredutível.

  • Aspas Essa nova variante da gripe suína, por exemplo, surgiu da recombinação de três espécies anteriores de vírus, através de um mecanismo que décadas atrás a gente nem sequer suspeitava que existisse"
Mas pesquisadores da genômica já conseguiram formar redes de interação metabólicas altamente complexas, envolvendo mais de 20 mil proteínas. E elas foram formadas por pequenos acréscimos e perdas, exatamente da maneira prevista pelo princípio da seleção natural.

Lemke diz que mesmo a nossa visão sobre o funcionamento dos flagelos mudou. “A genômica mostra de forma bastante clara que esse processo ocorreu ao longo de muito tempo. Temos inclusive uma ideia dos passos evolutivos. No caso da E. coli, por exemplo, podemos mostrar que as proteínas que compõem o flagelo ocorrem em outras espécies de bactérias, em muitos casos com funções levemente diferentes”, explica. “A ideia de complexidade irredutível não encontra comprovação empírica”, diz Mellender.

Há quem sustente, porém, que nenhuma grande revisão da síntese neodarwinista seja necessária, pelo menos por enquanto. É o que pensa Guaracy Rocha, coordenador do curso de Ciências Biológicas da Unesp em Botucatu, que há 20 anos ministra a disciplina de evolução. “A essência do pensamento darwinista consiste em afirmar que os organismos se modificam, que essas modificações acontecem por um processo de seleção que atua entre as diversas variantes e que essas variações não ocorrem com fins específicos. Nada disso é contestado pelas descobertas feitas na genômica e na epigenética”, diz.




Quanto à árvore da vida, Rocha concorda que a imagem não mais representa o conhecimento que temos hoje, embora ressalte que ela traduzia, e bem, o que se sabia na época em que foi proposta. Ele acredita que a principal contribuição trazida pelas pesquisas efetuadas nos últimos anos é a possibilidade de compreender melhor os mecanismos que levam à formação de novas espécies entre as várias formas de seres vivos – um problema, aliás, que Darwin não chegou a solucionar, apesar do título de seu livro.

“Estamos vendo que o processo de surgimento de espécies novas entre os vegetais é totalmente diferente do que se pode observar em bactérias ou em vírus. Essa nova variante da gripe suína, por exemplo, surgiu da recombinação de três espécies anteriores de vírus, através de um mecanismo que décadas atrás a gente nem sequer suspeitava que existisse.”

Ele afirma que Darwin tinha mais interesse por Lamarck do que se pensa hoje em dia, mas contesta a visão de que a epigenética possa levar a uma retomada das ideias do francês. “Já se sabia antes que a expressão do genoma resulta da interação entre este e o ambiente. Mas as mutações nos genes, que podem ou não ser inibidas por fatores ambientais, não surgiram especificamente para atender a nenhuma função. Elas foram produzidas e descartadas pela ação da seleção. E isso não é lamarckismo, é darwinismo”, diz.

Para os defensores de uma revisão da teoria, o problema é que ainda há lacunas a serem preenchidas, como afirma Souza: “Darwin demonstrou de uma forma muito bonita que existe um processo evolutivo. A questão é se ele é geral. As evidências da paleontologia demonstram isso. Agora como isso acontece é que é complicado. A seleção natural é um mecanismo forte, mas não de criação de espécies”.

Diante dessa diversidade de visões, é de se esperar, pelos próximos anos, discussões vigorosas entre as várias correntes, que talvez venham a culminar em uma teoria da evolução 2.0. Mas, independentemente de qual venha a se mostrar predominante daqui a 20 ou 30 anos, tanto umas quanto outras, na verdade, são expressões do profundo valor científico da obra de Darwin.

Copyright: Unesp Ciência

terça-feira, 19 de maio de 2009

Parceiro de Charles Darwin

Pesquisador alemão Fritz Müller, naturalizado brasileiro, em longa correspondência com Darwin, forneceu evidências empíricas da consistência da seleção natural

Neste ano em que se comemoram o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e os 150 anos do livro A origem das espécies, poucos sabem como idéias inovadoras e transformadoras do pensamento humano nessa área chegaram ao Brasil. Na realidade, elas foram introduzidas por um pesquisador alemão, naturalizado brasileiro, conhecido por Fritz Müller, personagem excêntrico e progressista que viveu boa parte de sua vida em Santa Catarina, entre Blumenau e Nossa Senhora do Desterro, antigo nome de Florianópolis. Müller deixou uma obra naturalística enorme, que contribuiu para fundamentar e enriquecer a teoria da evolução das espécies por seleção natural de Darwin e projetou o Brasil no cenário da culta ciência européia. Infelizmente, o legado de Müller é pouco conhecido entre nós, mesmo entre a comunidade de biólogos e professores que não divulgam sua obra.
Johann Friedrich Theodor Müller, seu nome completo, nasceu na Alemanha, numa pequena aldeia (Windischholzhausen) da Turíngia, próximo à cidade de Erfurt. Filho mais velho de um pastor evangélico, desde cedo revelou seu interesse pela Natureza, influenciado por Hermann Blumenau, amigo de seu avô, e de quem receberia profunda influência.

Atraído pelas ciências naturais e matemática Müller ingressou na Universidade de Berlim, onde, em 1844, obteve o grau de doutor em filosofia (história natural) aos 22 anos, defendendo uma tese sobre as sanguessugas da região de Berlim. Nessa ocasião já pensava em imigrar, empolgado pelas aventuras e descrições do Brasil feitas por Hermann Blumenau – fundador da cidade que leva seu nome, em Santa Catarina. Em 1845 torna-se professor ginasial em Erfut, mas devido a suas crenças liberais e temperamento rebelde abandona o posto. No mesmo ano, decide cursar medicina na Universidade de Greifswald (1845-1848) como meio de facilitar sua migração.


Mudança para o Brasil
Em 1852, aos 30 anos, Müller emigra com sua família (esposa e filha de nove meses) e um irmão da Alemanha para a recém-fundada Colônia de Blumenau, onde vive por 45 anos, até sua morte em 1897. Nos quatro primeiros anos em que viveu na mata virgem de Blumenau ajudou a construir a colônia, trabalhando na enxada e no machado como simples colono, apesar de sua privilegiada formação acadêmica. Durante esse período pesquisou fauna e flora, relacionou-se com os índios xoklengs e excepcionalmente atuou como médico, pois sua vocação era de naturalista. Sentia-se muito feliz com sua nova opção de vida no que chamava de sua segunda pátria, e nunca mais retornou à Alemanha.

Em 1855 Müller instalou-se com a família na casa em estilo enxaimel que construiu com suas próprias mãos e que hoje abriga o museu de ecologia que leva seu nome.

Fritz Müller estudou e descreveu vários grupos zoológicos, principalmente invertebrados marinhos. Tinha um talento incomum para o desenho e suas descrições eram sempre permeadas de ilustrações de incrível detalhamento. Em Desterro estabelece correspondência com várias eminências científicas da época, destacando-se sua extensa e contínua correspondência com Charles Darwin que se estende por 17 anos, até a morte do naturalista inglês em 1882. Foi em Desterro que F. Müller atingiu reconhecimento na comunidade científica internacional sendo conhecido por Fritz Müller – Desterro, codinome proposto por Ernst Haeckel (pai do termo Ecologia), para distingui-lo de outros notáveis homônimos alemães.

Em 1861, Fritz Müller recebeu um exemplar do livro A origem das espécies de Charles Darwin. Ao ler a obra sente-se identificado com as idéias de Darwin. Por ser ateu convicto, sua mente não apresentava nenhuma restrição ou resistência às concepções de Darwin, recebendo-as com natural abertura e aceitação. Inicialmente, pensa em publicar algumas observações gerais em favor da teoria, mas, em seguida, considerou que a melhor prova seria testá-la no campo, com observações experimentais com seres vivos, em vez de restringir-se a discussões teóricas.

Para testar a teoria darwiniana Müller escolheu os crustáceos, por ser um grupo muito diversificado e abundante no litoral de Santa Catarina e também por sua taxonomia já ser bem estabelecida na época. F. Müller postulou que se a teoria de Darwin estivesse correta seria possível demonstrar que os diversos táxons (grupos) de crustáceos teriam se separado uns dos outros, a partir de um ancestral comum, e foram adquirindo características novas em fases sucessivas de seu desenvolvimento (ontogênese), que seriam fixadas e/ou eliminadas pela seleção natural.

Suporte Observacional
Em seu estudo pioneiro com crustáceos Müller realizou uma série de observações que culminaram com o descobrimento de muitos fatos novos, principalmente no que se refere ao seu desenvolvimento. O fruto desse longo e minucioso estudo resultou num livro de excepcional riqueza de observações originais Für Darwin (Pró-Darwin). O livro foi publicado em Leipzig, Alemanha, em 1864 (por W. Engelmann) e ajudou a propagar e defender a teoria darwiniana, que tinha suscitado forte reação contrária naquele país. A tradução de Für Darwin para o português foi feita em 1907-08 na revista Kosmos do Rio de Janeiro (versão incompleta) e mais recentemente (1990) uma versão completa foi empreendida por Hitoshi Nomura (Fundação Catarinense de Cultura e Departamento Nacional da Produção Mineral, edição esgotada).

Esse denso e original ensaio inclui um número extraordinário de observações sobre crustáceos, abrangendo as diferentes adaptações das espécies de ambiente marinho que migraram para água doce e ambiente terrestre, a assimetria bilateral dos membros, o dimorfismo sexual, o polimorfismo intra-específico e a morfologia e desenvolvimento das diferentes formas larvais. Tudo com ilustrações à mão livre.

Ao longo de 12 capítulos, o livro trouxe subsídios preciosos e decisivos a favor da teoria darwiniana. Como conclusão às suas observações Müller escreve: “Durante o período crucial da dúvida, que não foi curto, quando o fiel da balança oscilava diante de mim em perfeita incerteza entre os prós e os contras [à teoria darwiniana], e quando todo e qualquer fato que levasse a uma pronta decisão teria sido bem-vindo, nunca tive o menor problema com qualquer contradição surgida entre as conseqüências trazidas para a classe dos crustáceos pela teoria de Darwin. Pois nunca as encontrei, nem na época, nem depois. Aquelas que havia encontrado dissiparam-se após uma consideração mais profunda, ou converteram-se em sustentáculos da doutrina darwinista”.

Cabe ressaltar que o uso de caracteres adquiridos compartilhados (conhecidos hoje por sinapomorfias) para mostrar relações filogenéticas (evolutivas) entre espécies vivas de crustáceos foi uma grande inovação introduzida por Müller. Os diagramas de ramos que ele utilizou, hoje conhecidos como cladogramas por agruparem os organismos e seus ancestrais comuns em clados, e tão utilizados em árvores filogenéticas, já haviam sido propostos por Müller um século antes da teoria cladística, proposta por Willi Hennig. Nelson Papavero relata que Müller foi, certamente, o primeiro a criar uma filogenia séria, com base em observações concretas e exaustivas de material vivo, diferentemente de Darwin, e depois, Haeckel, que propuseram árvores filogenéticas teóricas.

Müller desenvolve ainda em Für Darwin, a recapitulação ontogenética da filogenia, que foi fortemente corroborada e divulgada por Haeckel. Na época de Müller, já se sabia que as fases larvais e juvenis dos crustáceos abrangem uma grande variedade de formas. Os crustáceos mais basais nas filogenias, como cracas, copépodes e ostracodes emergem do ovo sob forma de náuplio, a forma larval mais simples. Os caranguejos marinhos e camarões de água doce nascem no estágio de zoea, formas larvais que já apresentam inúmeros apêndices. Já os lagostins de água doce e alguns caranguejos terrícolas (crustáceos superiores) suprimem as fases larvais e a metamorfose e emergem do ovo já sob forma juvenil, pequenos adultos em miniatura.

Pioneirismo Plagiado
No litoral de Santa Catarina, Fritz Müller descobriu um camarão marinho do gênero Penaeus que nasce, curiosamente, sob forma de náuplio, antes de passar pelo estágio de zoea. Face a essa observação Müller sugeriu, de acordo com a teoria darwiniana, que os caranguejos marinhos e os camarões que emergem sob forma de zoea, deveriam passar pelo estágio mais simples de náuplio durante seu desenvolvimento embrionário, o que de fato se confi rmou. Hoje, pode-se dizer que os crustáceos derivados, que saíram do ambiente marinho para áreas continentais, “embrionizaram” as formas larvais mais simples de seus ancestrais, carregando a história de seus antepassados na sua fase embrionária (recapitulação ontogenética da filogenia).

Segundo David West, a Lei da biogenética, de autoria de Haeckel em 1866, que defende que a ontogenia (desenvolvimento individual, de embrião a adulto) recapitula a fi logenia (trajetória evolutiva de um grupo), foi na realidade proposta originalmente por F. Müller e “copiada” por Haeckel, que só reconheceu sua dívida para com Müller em 1872.

Darwin teve acesso ao livro de Fritz Müller em 1865 e percebeu imediatamente o inestimável suporte que a obra representava às suas idéias. Nesse mesmo ano, Darwin escreve a F. Müller ... “O senhor fez um admirável serviço pela causa em que ambos acreditamos. Muitos de seus argumentos me parecem excelentes, e muitos de seus fatos, maravilhosos.... vejo a publicação de seu ensaio como uma das maiores honras que jamais me foram conferidas”... O próprio Darwin providenciou a tradução do livro de Müller para o inglês numa edição publicada em 1869, sob o título de Facts and arguments for Darwin. Inicia-se então uma intensa correspondência entre os dois que dura até a morte de Darwin. Mas eles nunca se conheceram pessoalmente.

Darwin referia-se ao amigo Fritz Müller como “príncipe dos observadores” e o considerava como um mestre, apesar de 13 anos mais jovem. Darwin recorreu a Müller inúmeras vezes para elucidar pontos importantes e controvertidos de sua teoria. E Müller supriu Darwin de incontáveis evidências nas áreas da zoologia e botânica que fundamentaram e enriqueceram sua teoria. Fritz Müller é citado 16 vezes nas edições posteriores de A origem das espécies de Darwin. Em carta ao amigo, Darwin escreve: “Só Deus sabe se viverei o suficiente para aproveitar a metade dos importantes fatos que me tens comunicado... Não acredito que haja alguém no mundo que admire seu zelo na ciência e seu grande poder de observação mais que eu” (carta de 23/02/1881).

A correspondência entre Fritz Müller e Darwin foi publicada em português por um dos autores (Cezar Zillig) sob o título de Dear Mr. Darwin, em 1997, por ocasião do centenário da morte de Fritz Müller.

Durante toda sua vida Müller dedicou-se entusiasticamente à sustentação da teoria de Darwin, através de inúmeras observações minuciosas, muitas delas encomendadas pelo próprio Darwin. Em seu obituário publicado na revista Nature (1897), questiona-se se algum outro naturalista, além do próprio Darwin, deu ao mundo uma massa tão ampla e original de observações na qual a seleção natural fosse tão consistentemente fundamentada.

Desconhecido no Brasil
Dentre as inúmeras contribuições de Müller destaca-se ainda o reconhecido fenômeno do mimetismo mülleriano, citado em todos os livros de biologia evolutiva. Quantos biólogos brasileiros sabem que esse fenômeno foi proposto pelo Fritz Müller de Blumenau/ Desterro? O mimetismo batesiano, que propõe que borboletas monarcas palatáveis assumem padrões de desenhos e cores de asas muito similares às borboletas não-palatáveis, como forma de proteção contra predadores, parece ser mais bem conhecido. Fritz Müller ficou intrigado em descobrir porque várias borboletas não-palatáveis, em Santa Catarina, apresentavam também padrões de desenhos e cores de asas muito semelhantes entre si.

Que vantagem esse mimetismo poderia trazer, já que todas as borboletas eram não-palatáveis e, portanto, não apreciadas por predadores? Müller demonstrou que existe uma vantagem real e incontestável nesse tipo de mimetismo que é inversamente proporcional ao quadrado do número de seus indivíduos. Isso significa que a espécie mais rara teria um ganho maior e, portanto, estaria sob seleção natural mais forte.

Apesar de seu possível desconforto e da necessidade de sobreviver numa região tão inóspita, Müller deixou um enorme legado florístico e faunístico, especialmente da região sul do Brasil, contribuindo para o conhecimento da sistemática, morfologia e fisiologia dos seres vivos. Identificou e descreveu, pela primeira vez um número enorme de espécies de invertebrados marinhos, de água doce e terrestres, além de plantas da região subtropical, sempre enriquecendo suas descrições com ilustrações de incrível detalhamento. Entre o legado faunístico destacam-se crustáceos, abelhas brasileiras (principalmente as sem ferrão), insetos tricópteros, mosquitos, cupins, formigas, borboletas e hemicordados, entre outros. Em seu legado florístico dedicou-se em especial às orquídeas e bromélias (estudando ainda as interações inseto-planta), plantas trepadeiras com seus ramos modificados em gavinhas, movimentos de plantas e folhas, entre outros.

CONCEITOS-CHAVE ■ Fritz Müller, naturalista alemão que em 1852, aos 30 anos, emigrou para o Brasil, foi o único colaborador de Charles Darwin aqui.

■ Ao longo de anos de correspondência, Müller, que nunca teve um encontro pessoal com Darwin, forneceu evidências empíricas, resultado de suas observações sobre a consistência da evolução.

■ Para testar a teoria darwiniana Müller escolheu os crustáceos, por ser um grupo muito diversificado e abundante no litoral de Santa Catarina onde vivia e também por sua taxonomia já ser bem estabelecida na época.

■ Desse longo e minucioso estudo resultou o livro Für Darwin (Pró-Darwin). Publicado em Leipzig, Alemanha, em 1864, o qual ajudou a propagar e defender a teoria darwinista que havia provocado forte reação contrária naquele país.

■ Criador do mimetismo mülleriano, Fritz Müller é pouco conhecido no Brasil, mesmo entre biólogos.
– Os editores


PARA CONHECER MAIS M. W . Castro, 1992. O sábio e a floresta. Ed. Rocco, Rio de Janeiro.

F. Müller, 1869. Facts and arguments for Darwin. John Murray, Londres.

N. Papavero, 2003. Fritz Müller e a Comprovação da Teoria de Darwin em A recepção do darwinismo no Brasil. H. M.B. Domingues; M. Romero Sá; Glick T. Ed. Fiocruz, Rio de Janeiro.

E. Roquette-Pinto; P. Sawaya; Nascimento, G.K P. Friesen; Zillig, C. 2000. Fritz Müller: reflexões biográficas.

P. Sawaya, 1966. Homenagem a Fritz Müller. Ciênc. Cult. Vol. 18.

D. A. West, 2003. Fritz Müller: A naturalist in Brazil. Ed. Pocahontas Press, Virginia.

C. Zillig, 1997. Dear Mr. Darwin: a intimidade da correspondência entre Fritz Müller e Charles Darwin. Ed. AS Gráfica e Editora.