terça-feira, 19 de maio de 2009

Parceiro de Charles Darwin

Pesquisador alemão Fritz Müller, naturalizado brasileiro, em longa correspondência com Darwin, forneceu evidências empíricas da consistência da seleção natural

Neste ano em que se comemoram o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e os 150 anos do livro A origem das espécies, poucos sabem como idéias inovadoras e transformadoras do pensamento humano nessa área chegaram ao Brasil. Na realidade, elas foram introduzidas por um pesquisador alemão, naturalizado brasileiro, conhecido por Fritz Müller, personagem excêntrico e progressista que viveu boa parte de sua vida em Santa Catarina, entre Blumenau e Nossa Senhora do Desterro, antigo nome de Florianópolis. Müller deixou uma obra naturalística enorme, que contribuiu para fundamentar e enriquecer a teoria da evolução das espécies por seleção natural de Darwin e projetou o Brasil no cenário da culta ciência européia. Infelizmente, o legado de Müller é pouco conhecido entre nós, mesmo entre a comunidade de biólogos e professores que não divulgam sua obra.
Johann Friedrich Theodor Müller, seu nome completo, nasceu na Alemanha, numa pequena aldeia (Windischholzhausen) da Turíngia, próximo à cidade de Erfurt. Filho mais velho de um pastor evangélico, desde cedo revelou seu interesse pela Natureza, influenciado por Hermann Blumenau, amigo de seu avô, e de quem receberia profunda influência.

Atraído pelas ciências naturais e matemática Müller ingressou na Universidade de Berlim, onde, em 1844, obteve o grau de doutor em filosofia (história natural) aos 22 anos, defendendo uma tese sobre as sanguessugas da região de Berlim. Nessa ocasião já pensava em imigrar, empolgado pelas aventuras e descrições do Brasil feitas por Hermann Blumenau – fundador da cidade que leva seu nome, em Santa Catarina. Em 1845 torna-se professor ginasial em Erfut, mas devido a suas crenças liberais e temperamento rebelde abandona o posto. No mesmo ano, decide cursar medicina na Universidade de Greifswald (1845-1848) como meio de facilitar sua migração.


Mudança para o Brasil
Em 1852, aos 30 anos, Müller emigra com sua família (esposa e filha de nove meses) e um irmão da Alemanha para a recém-fundada Colônia de Blumenau, onde vive por 45 anos, até sua morte em 1897. Nos quatro primeiros anos em que viveu na mata virgem de Blumenau ajudou a construir a colônia, trabalhando na enxada e no machado como simples colono, apesar de sua privilegiada formação acadêmica. Durante esse período pesquisou fauna e flora, relacionou-se com os índios xoklengs e excepcionalmente atuou como médico, pois sua vocação era de naturalista. Sentia-se muito feliz com sua nova opção de vida no que chamava de sua segunda pátria, e nunca mais retornou à Alemanha.

Em 1855 Müller instalou-se com a família na casa em estilo enxaimel que construiu com suas próprias mãos e que hoje abriga o museu de ecologia que leva seu nome.

Fritz Müller estudou e descreveu vários grupos zoológicos, principalmente invertebrados marinhos. Tinha um talento incomum para o desenho e suas descrições eram sempre permeadas de ilustrações de incrível detalhamento. Em Desterro estabelece correspondência com várias eminências científicas da época, destacando-se sua extensa e contínua correspondência com Charles Darwin que se estende por 17 anos, até a morte do naturalista inglês em 1882. Foi em Desterro que F. Müller atingiu reconhecimento na comunidade científica internacional sendo conhecido por Fritz Müller – Desterro, codinome proposto por Ernst Haeckel (pai do termo Ecologia), para distingui-lo de outros notáveis homônimos alemães.

Em 1861, Fritz Müller recebeu um exemplar do livro A origem das espécies de Charles Darwin. Ao ler a obra sente-se identificado com as idéias de Darwin. Por ser ateu convicto, sua mente não apresentava nenhuma restrição ou resistência às concepções de Darwin, recebendo-as com natural abertura e aceitação. Inicialmente, pensa em publicar algumas observações gerais em favor da teoria, mas, em seguida, considerou que a melhor prova seria testá-la no campo, com observações experimentais com seres vivos, em vez de restringir-se a discussões teóricas.

Para testar a teoria darwiniana Müller escolheu os crustáceos, por ser um grupo muito diversificado e abundante no litoral de Santa Catarina e também por sua taxonomia já ser bem estabelecida na época. F. Müller postulou que se a teoria de Darwin estivesse correta seria possível demonstrar que os diversos táxons (grupos) de crustáceos teriam se separado uns dos outros, a partir de um ancestral comum, e foram adquirindo características novas em fases sucessivas de seu desenvolvimento (ontogênese), que seriam fixadas e/ou eliminadas pela seleção natural.

Suporte Observacional
Em seu estudo pioneiro com crustáceos Müller realizou uma série de observações que culminaram com o descobrimento de muitos fatos novos, principalmente no que se refere ao seu desenvolvimento. O fruto desse longo e minucioso estudo resultou num livro de excepcional riqueza de observações originais Für Darwin (Pró-Darwin). O livro foi publicado em Leipzig, Alemanha, em 1864 (por W. Engelmann) e ajudou a propagar e defender a teoria darwiniana, que tinha suscitado forte reação contrária naquele país. A tradução de Für Darwin para o português foi feita em 1907-08 na revista Kosmos do Rio de Janeiro (versão incompleta) e mais recentemente (1990) uma versão completa foi empreendida por Hitoshi Nomura (Fundação Catarinense de Cultura e Departamento Nacional da Produção Mineral, edição esgotada).

Esse denso e original ensaio inclui um número extraordinário de observações sobre crustáceos, abrangendo as diferentes adaptações das espécies de ambiente marinho que migraram para água doce e ambiente terrestre, a assimetria bilateral dos membros, o dimorfismo sexual, o polimorfismo intra-específico e a morfologia e desenvolvimento das diferentes formas larvais. Tudo com ilustrações à mão livre.

Ao longo de 12 capítulos, o livro trouxe subsídios preciosos e decisivos a favor da teoria darwiniana. Como conclusão às suas observações Müller escreve: “Durante o período crucial da dúvida, que não foi curto, quando o fiel da balança oscilava diante de mim em perfeita incerteza entre os prós e os contras [à teoria darwiniana], e quando todo e qualquer fato que levasse a uma pronta decisão teria sido bem-vindo, nunca tive o menor problema com qualquer contradição surgida entre as conseqüências trazidas para a classe dos crustáceos pela teoria de Darwin. Pois nunca as encontrei, nem na época, nem depois. Aquelas que havia encontrado dissiparam-se após uma consideração mais profunda, ou converteram-se em sustentáculos da doutrina darwinista”.

Cabe ressaltar que o uso de caracteres adquiridos compartilhados (conhecidos hoje por sinapomorfias) para mostrar relações filogenéticas (evolutivas) entre espécies vivas de crustáceos foi uma grande inovação introduzida por Müller. Os diagramas de ramos que ele utilizou, hoje conhecidos como cladogramas por agruparem os organismos e seus ancestrais comuns em clados, e tão utilizados em árvores filogenéticas, já haviam sido propostos por Müller um século antes da teoria cladística, proposta por Willi Hennig. Nelson Papavero relata que Müller foi, certamente, o primeiro a criar uma filogenia séria, com base em observações concretas e exaustivas de material vivo, diferentemente de Darwin, e depois, Haeckel, que propuseram árvores filogenéticas teóricas.

Müller desenvolve ainda em Für Darwin, a recapitulação ontogenética da filogenia, que foi fortemente corroborada e divulgada por Haeckel. Na época de Müller, já se sabia que as fases larvais e juvenis dos crustáceos abrangem uma grande variedade de formas. Os crustáceos mais basais nas filogenias, como cracas, copépodes e ostracodes emergem do ovo sob forma de náuplio, a forma larval mais simples. Os caranguejos marinhos e camarões de água doce nascem no estágio de zoea, formas larvais que já apresentam inúmeros apêndices. Já os lagostins de água doce e alguns caranguejos terrícolas (crustáceos superiores) suprimem as fases larvais e a metamorfose e emergem do ovo já sob forma juvenil, pequenos adultos em miniatura.

Pioneirismo Plagiado
No litoral de Santa Catarina, Fritz Müller descobriu um camarão marinho do gênero Penaeus que nasce, curiosamente, sob forma de náuplio, antes de passar pelo estágio de zoea. Face a essa observação Müller sugeriu, de acordo com a teoria darwiniana, que os caranguejos marinhos e os camarões que emergem sob forma de zoea, deveriam passar pelo estágio mais simples de náuplio durante seu desenvolvimento embrionário, o que de fato se confi rmou. Hoje, pode-se dizer que os crustáceos derivados, que saíram do ambiente marinho para áreas continentais, “embrionizaram” as formas larvais mais simples de seus ancestrais, carregando a história de seus antepassados na sua fase embrionária (recapitulação ontogenética da filogenia).

Segundo David West, a Lei da biogenética, de autoria de Haeckel em 1866, que defende que a ontogenia (desenvolvimento individual, de embrião a adulto) recapitula a fi logenia (trajetória evolutiva de um grupo), foi na realidade proposta originalmente por F. Müller e “copiada” por Haeckel, que só reconheceu sua dívida para com Müller em 1872.

Darwin teve acesso ao livro de Fritz Müller em 1865 e percebeu imediatamente o inestimável suporte que a obra representava às suas idéias. Nesse mesmo ano, Darwin escreve a F. Müller ... “O senhor fez um admirável serviço pela causa em que ambos acreditamos. Muitos de seus argumentos me parecem excelentes, e muitos de seus fatos, maravilhosos.... vejo a publicação de seu ensaio como uma das maiores honras que jamais me foram conferidas”... O próprio Darwin providenciou a tradução do livro de Müller para o inglês numa edição publicada em 1869, sob o título de Facts and arguments for Darwin. Inicia-se então uma intensa correspondência entre os dois que dura até a morte de Darwin. Mas eles nunca se conheceram pessoalmente.

Darwin referia-se ao amigo Fritz Müller como “príncipe dos observadores” e o considerava como um mestre, apesar de 13 anos mais jovem. Darwin recorreu a Müller inúmeras vezes para elucidar pontos importantes e controvertidos de sua teoria. E Müller supriu Darwin de incontáveis evidências nas áreas da zoologia e botânica que fundamentaram e enriqueceram sua teoria. Fritz Müller é citado 16 vezes nas edições posteriores de A origem das espécies de Darwin. Em carta ao amigo, Darwin escreve: “Só Deus sabe se viverei o suficiente para aproveitar a metade dos importantes fatos que me tens comunicado... Não acredito que haja alguém no mundo que admire seu zelo na ciência e seu grande poder de observação mais que eu” (carta de 23/02/1881).

A correspondência entre Fritz Müller e Darwin foi publicada em português por um dos autores (Cezar Zillig) sob o título de Dear Mr. Darwin, em 1997, por ocasião do centenário da morte de Fritz Müller.

Durante toda sua vida Müller dedicou-se entusiasticamente à sustentação da teoria de Darwin, através de inúmeras observações minuciosas, muitas delas encomendadas pelo próprio Darwin. Em seu obituário publicado na revista Nature (1897), questiona-se se algum outro naturalista, além do próprio Darwin, deu ao mundo uma massa tão ampla e original de observações na qual a seleção natural fosse tão consistentemente fundamentada.

Desconhecido no Brasil
Dentre as inúmeras contribuições de Müller destaca-se ainda o reconhecido fenômeno do mimetismo mülleriano, citado em todos os livros de biologia evolutiva. Quantos biólogos brasileiros sabem que esse fenômeno foi proposto pelo Fritz Müller de Blumenau/ Desterro? O mimetismo batesiano, que propõe que borboletas monarcas palatáveis assumem padrões de desenhos e cores de asas muito similares às borboletas não-palatáveis, como forma de proteção contra predadores, parece ser mais bem conhecido. Fritz Müller ficou intrigado em descobrir porque várias borboletas não-palatáveis, em Santa Catarina, apresentavam também padrões de desenhos e cores de asas muito semelhantes entre si.

Que vantagem esse mimetismo poderia trazer, já que todas as borboletas eram não-palatáveis e, portanto, não apreciadas por predadores? Müller demonstrou que existe uma vantagem real e incontestável nesse tipo de mimetismo que é inversamente proporcional ao quadrado do número de seus indivíduos. Isso significa que a espécie mais rara teria um ganho maior e, portanto, estaria sob seleção natural mais forte.

Apesar de seu possível desconforto e da necessidade de sobreviver numa região tão inóspita, Müller deixou um enorme legado florístico e faunístico, especialmente da região sul do Brasil, contribuindo para o conhecimento da sistemática, morfologia e fisiologia dos seres vivos. Identificou e descreveu, pela primeira vez um número enorme de espécies de invertebrados marinhos, de água doce e terrestres, além de plantas da região subtropical, sempre enriquecendo suas descrições com ilustrações de incrível detalhamento. Entre o legado faunístico destacam-se crustáceos, abelhas brasileiras (principalmente as sem ferrão), insetos tricópteros, mosquitos, cupins, formigas, borboletas e hemicordados, entre outros. Em seu legado florístico dedicou-se em especial às orquídeas e bromélias (estudando ainda as interações inseto-planta), plantas trepadeiras com seus ramos modificados em gavinhas, movimentos de plantas e folhas, entre outros.

CONCEITOS-CHAVE ■ Fritz Müller, naturalista alemão que em 1852, aos 30 anos, emigrou para o Brasil, foi o único colaborador de Charles Darwin aqui.

■ Ao longo de anos de correspondência, Müller, que nunca teve um encontro pessoal com Darwin, forneceu evidências empíricas, resultado de suas observações sobre a consistência da evolução.

■ Para testar a teoria darwiniana Müller escolheu os crustáceos, por ser um grupo muito diversificado e abundante no litoral de Santa Catarina onde vivia e também por sua taxonomia já ser bem estabelecida na época.

■ Desse longo e minucioso estudo resultou o livro Für Darwin (Pró-Darwin). Publicado em Leipzig, Alemanha, em 1864, o qual ajudou a propagar e defender a teoria darwinista que havia provocado forte reação contrária naquele país.

■ Criador do mimetismo mülleriano, Fritz Müller é pouco conhecido no Brasil, mesmo entre biólogos.
– Os editores


PARA CONHECER MAIS M. W . Castro, 1992. O sábio e a floresta. Ed. Rocco, Rio de Janeiro.

F. Müller, 1869. Facts and arguments for Darwin. John Murray, Londres.

N. Papavero, 2003. Fritz Müller e a Comprovação da Teoria de Darwin em A recepção do darwinismo no Brasil. H. M.B. Domingues; M. Romero Sá; Glick T. Ed. Fiocruz, Rio de Janeiro.

E. Roquette-Pinto; P. Sawaya; Nascimento, G.K P. Friesen; Zillig, C. 2000. Fritz Müller: reflexões biográficas.

P. Sawaya, 1966. Homenagem a Fritz Müller. Ciênc. Cult. Vol. 18.

D. A. West, 2003. Fritz Müller: A naturalist in Brazil. Ed. Pocahontas Press, Virginia.

C. Zillig, 1997. Dear Mr. Darwin: a intimidade da correspondência entre Fritz Müller e Charles Darwin. Ed. AS Gráfica e Editora.

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